Em 1968, o artista brasileiro Flavio de Carvalho homenageou Federico Garcia Lorca com um monumento modernista, que erigiu no bairro dos Jardins, em São Paulo. A peça foi destruída durante a ditadura militar e guardada num depósito até que estudantes de arquitetura da Universidade de São Paulo (USP) a restauraram e a levaram a um museu. Nesta terça (10), a obra voltou à praça das Guianas, seu local de origem.
Por Christiane Marcondes
Antes, passou por um novo minucioso processo de restauração, que incluiu a retirada de camadas de tintas e a substituição das peças enferrujadas.
É um resgate histórico oportuno da memória de um autor dos mais talentosos, combativo e que desembarcou nas águas culturais brasileiras em 1936, um ano após sua morte por fuzilamento durante a ditadura franquista. Foi um autor proibido no Estado Novo -- que só permitia a comercialização de obras produzidas por editoras brasileiras -- e chegou a passar como um cometa pelo Rio, em 1930, a caminho de Barcelona.
Mesmo assim, até os anos 1940, Lorca, no Brasil, era conhecido por uma população ínfima de literatos ou admiradores com acesso à produção intelectual europeia. Quem narra esse episódio e todo o processo de popularização e divulgação de Lorca no Brasil é o especialista Antón Corbacho Quintela, no texto a seguir, produzido em 2007, ano em que a morte do espanhol completou 80 anos:
Garcia Lorca no Brasil
O poeta espanhol, nascido em 1898 na província de Granada, morreu fuzilado em 1936, menos de um mês após o início da Guerra Civil espanhola. No ano seguinte, Mauro de Alencar inaugurou nossa fortuna crítica de Lorca com um artigo intitulado “Vida, mundo e obra de Federico García Lorca”, publicado na revista Rumo, no Rio de Janeiro.
Por Antón Corbacho Quintela*
Mais de uma dezena de consagrados poetas brasileiros dedicou composições a Lorca e, em 1989, sua obra poética completa foi, por primeira vez, traduzida ao português pelo diplomata e intelectual goiano William Agel de Melo.
As tragédias de Lorca começaram a ser encenadas em 1944 e Heitor Villa-Lobos (1956) baseou-se na peça de teatro Yerma para compor, entre 1955 e 1956, a ópera homônima. Em 1976, o cantor e compositor Fagner musicou Bodas de Sangre e, para o LP em homenagem a Federico García Lorca - Poetas em Nova York -, lançado mundialmente em 1986, Fagner musicou e cantou, junto a Chico Buarque, o poema “A Aurora”, traduzido, ad hoc, ao português, por Ferreira Gullar.
“Zorongo Gitano” é o título dado por Edson Cordeiro em 1994 a sua interpretação musicada do poema “A Antonio Mairena, Cantador de Flamengo”, de João Cabral de Melo Neto. Nesse caso, o cantor preferiu retirar o título original do poema e inserir o título de uns versos de Lorca [Zorongo] que, estrutural e tematicamente, não estão relacionados com a composição de João Cabral, a não ser pela comunhão da atmosfera flamenca. Parece que o cantor pretendeu enfatizar a circunstância andaluza da composição de João Cabral aludindo a um produto de Lorca, o qual transmite a impressão de que, para Cordeiro, estava latente uma mimese do folclore musical andaluz na obra de Lorca.
O autor espanhol também foi objeto, mais recentemente, de composições dentro da música erudita. Em 1981, o compositor e regente Ricardo Tacuchian (1979) apresentou no Rio de Janeiro sua obra Ciclo Lorca, para barítono, clarineta e orquestra de cordas, em que se incluíam cantatas baseadas nos produtos “A Federico”, de Carlos Drummond de Andrade, “Em Granada”, de Alphonsus de Guimaraens Filho, “Canto a García Lorca”, de Murilo Mendes e “Epílogo”, de Carlos Drummond de Andrade. Recentemente, o compositor, músico e professor na Escola de Música da UFRN, Danilo Guanais, compôs uma Homenagem a García Lorca, para flauta e violão.
Um exemplo da popularização da poesia canonizada de Lorca pode-se observar, por um lado, na seleção publicada pela Folha de São Paulo, em janeiro de.2000, com “Os cem melhores poemas internacionais do século XX”. No sexto “lugar” esse jornal escolheu o Pranto por Ignacio Sánchez Mejías.
Por outro, essa popularização, isto é, a tentativa de que o corpus canonizado de Lorca chegue às massas, percebe-se na edição, economicamente acessível, lançada em 2001, no Rio de Janeiro e em São Paulo, de uma antologia de poemas de Lorca [A melhor poesia do mundo, 2001] pela Editora Caras e por Ediouro, que custava R$ 1,00. Até no pátio central do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás há uma placa com o verso do Romancero gitano “Verde que te quero verde” mediante o qual se tenta chamar a atenção para que os acadêmicos respeitem uma zona ajardinada.
Verde que te quero verde
Verde que te quero verde é também o título do ensaio de interpretação do Romancero gitano realizado há mais de vinte anos por Jose Carlos Lisboa (Lisboa, 1983). Se esse verso for introduzido em um “buscador” da web, provavelmente encontrar-se-ão mais de cinco mil entradas com páginas brasileiras que o usam por todo tipo de motivos, desde os estritamente ligados à produção literária aos relacionados com o direito ambiental, passando por estabelecimentos comerciais ligados ao turismo, por jardins botânicos, por documentos sobre artes plásticas e por floriculturas.
Contrastando com a difusão que a obra lorquiana começou a receber após o assassinato do autor, os documentos de que dispomos levam a inferir que a obra de Lorca foi pouco conhecida no Brasil em vida do poeta. Lorca, entretanto, esteve em território brasileiro em duas ocasiões. Ian Gibson (1989), biógrafo de Lorca, menciona três escalas do literato andaluz no Brasil durante a sua travessia transatlântica pelo Cone Sul. As duas primeiras aconteceram em outubro de 1933; o navio Conte Grande, que o levaria a Montevidéu, aportou aos 9 desse mês no Rio de Janeiro e, dois dias depois, em Santos, onde, tomando água de coco e comendo abacates, perdeu o navio. No Rio, Lorca fora recebido por Alfonso Reyes, escritor norte-americano que foi o embaixador do México no Brasil de 1930 a 1935. Segundo Gibson (ibidem, p. 407), Reyes entregou ao poeta os primeiros exemplares da “Oda a Walt Whitman” e acompanhou-o em uma turnê pela cidade.
A derradeira fugaz estadia de Lorca no Brasil teve lugar em 30 de março de 1934, durante a parada do Conte Biancamano, navio que zarpara de Buenos Aires e no qual Lorca regressava a Barcelona. No Rio, o poeta esteve de novo com Alfonso Reyes; Gibson (ibidem, p. 428) menciona que o mexicano presenteou Lorca com uma caixa envidraçada de borboletas tropicais, a qual ficaria “orgulhosamente exposta no apartamento da família em Madri”.
A inadvertência no passo de Lorca pelo Rio de Janeiro e por Santos redunda na premissa de que o interesse no poeta andaluz por parte da intelectualidade brasileira só se fez patente após a deflagração da guerra na Espanha e a chegada da notícia da morte do escritor. É provável que, a finais da década de 1920, se pudesse encomendar algum exemplar de suas obras em verso Libro de poemas, Poema del Cante Jondo, Primeras canciones, Canciones ou Romancero gitano na “Librería Española”, do Rio de Janeiro, sita primeiro na rua da Alfândega e depois na 13 de maio, a única livraria especializada no livro importado em língua espanhola durante essa década no Brasil.
Xenofobia
Mas é preciso ponderar que, em 1930, após ter sido consolidada a revolução dita liberal, se iniciou um período coercitivo em relação às identidades estrangeiras que, da formalização das posturas xenófobas no corpo das emendas nacionalistas da Carta Magna de 1934, culminou na campanha de nacionalização promulgada pelo Estado Novo. Assim, de acordo com o exposto por Maria Luiza Tucci Carneiro (2002, p. 104) em sua pesquisa sobre a censura de livros e a perseguição de “idéias malditas”, a legislação nacionalista de 1938 estabeleceu que livros, jornais e bíblias mantidos nas residências, associações comerciais, escolas e clubes deveriam ser impressos no Brasil.
Conseqüentemente, a partir de 1938, dificultou-se sobremaneira a importação de livros editados no exterior. A isso se deve somar o extremo zelo com que, desde 1936, os corpos de segurança brasileiros fiscalizaram a chegada de qualquer publicação procedente da Espanha. A preocupação existente no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e nos Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social (DEOPS) por evitar a propagação do credo vermelho associado à República Espanhola não prejudicou o curso normal que seguiram as relações diplomáticas entre as repúblicas do Brasil e da Espanha até março de 1938, quando o Brasil reconheceu o governo do general Franco, mas emperrou a divulgação da literatura espanhola.
O distanciamento cultural com a língua espanhola e a cultura hispânica fez com que no Brasil não surgisse uma crítica que pudesse acompanhar os lançamentos e apresentações de um poeta e dramaturgo que, antes do sucesso de público e crítica de Mariana Pineda (junho de 1927) e da publicação do Romancero gitano em 1928, só se assomara timidamente aos processos de inserção na canonização literária do sistema espanhol. Todavia, em 1944, Luis Amador Sánchez, professor da recém criada cátedra de Língua e Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo, publicou um estudo biográfico de Lorca intitulado “Biografia e Interpretação” (Trias, 2004) em que informa que a primeira vez que se mencionou Lorca no Brasil foi em 1930. Segundo esse professor, o literato andaluz Francisco Villaespesa, em viagem pelo Rio de Janeiro a convite do presidente Washington Luís, referira-se a ele e aos também poetas andaluzes Manuel e Antonio Machado como exponenciais mostras de melhor poesia contemporânea espanhola. Porém, desconhece-se em que circunstância Villaespesa fez esse comentário e qual foi a sua platéia. De todas as formas, deve-se ponderar que na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro não está registrado nenhum dos títulos de Lorca com edição anterior ao ano 1940[1] e que as primeiras traduções ao português do Brasil de produtos do seu corpus foram posteriores à sua morte.
Tempos do pós-modernismo
Portanto, ao longo da década de 1930, a única forma de aceder à leitura de um livro de Lorca seria adquirindo um exemplar importado em edição espanhola ou argentina, uma importação que suporia esquivar bastantes entraves devido à convulsionada circunstância das relações internacionais da época. As obras de teatro de Lorca, assim como seus livros de poemas só começaram a ser traduzidos e editados no Brasil quando já estavam sancionados como produtos canonizados do polissistema literário de Hispano-américa.
Sua tardia chegada ao mercado brasileiro não exerceu a função de ocupar vácuos literários nem de apresentar modelos que renovassem os paradigmas poéticos dominantes de um sistema que, sobretudo a partir da “Semana de 1922”, almejava receber o reconhecimento de ter atingido a auto-suficiência para promover a própria superação nas idéias e das formas, independentemente da influência das traduções.
Contudo, Lorca forneceu um novo modelo formal para a resolução do uso dramático do verso, estreitamente ligado à dimensão estrutural da obra teatral, nos enfrentamentos dialéticos das formas universais antagônicas encarnadas no princípio de autoridade em conflito com o princípio de liberdade. Nesse sentido, já em 1938, Augusto Frederico Schmidt, no artigo “Mauriac, Lorca e a eternidade do teatro” (Schmidt, 1938), pusera em relevo o drama das consciências atribuladas no teatro de Lorca. A maior valorização literária que inicialmente teve o teatro lorquiano frente à poesia detecta-se ao contrapor as primeiras traduções ao português do Brasil que ganhou a obra do andaluz.
Bodas de sangue
Em 1944, a “Companhia Dulcina-Odilon” de Dulcina de Morais e Odilon Azevedo levava ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e estreava no Brasil, Bodas de sangre [Bodas de sangue], em tradução de Cecília Meireles. Bodas de sangue permaneceu como peça da temporada oficial do principal teatro carioca até 1947, junto a César e Cleópatra de Bernard Shaw.
Aos 7 de dezembro de 1948, a companhia “Teatro de Amadores de Pernambuco” levou à cena, no Teatro de Santa Isabel da capital pernambucana, A casa de Bernarda Alba, sob direção de Valdemar de Oliveira, obedecendo à tradução de Maria Rosa Ribeiro. Depois da estréia, o “Teatro de Amadores de Pernambuco” apresentou A casa de Bernarda Alba em tournée pelas maiores capitais do país. Também no Teatro de Santa Isabel, essa mesma companhia encenou, em 1956, Bodas de sangue, na tradução de Cecília Meireles[2]. Sobre Bodas de sangue, a primeira grande análise crítica, desenvolvida por José Carlos Lisboa, foi publicada no Rio de Janeiro (Lisboa, 1961).
Perante a grande canonização - a canonização de massas - que recebeu o teatro de Lorca, a sua poesia só foi de vagar sendo inserida no sistema brasileiro. Assim, apesar de que, já em 1937, Mauro de Alencar resenhasse em um artigo a produção de Lorca e a circunstância do autor e de que, em 1943, Otto Maria Carpeaux dedicasse um ensaio à relação entre o neogongorismo e a poesia de García Lorca (Carpeaux, 1943), e embora três anos depois Edgard Cavalheiro tivesse escrito um estudo sobre o autor e a sua obra (Cavalheiro, 1946), houve que aguardar até 1957 para ver publicada a primeira tradução de um dos livros de versos do poeta andaluz. Essa primeira tradução completa de uma obra lírica de Lorca - o Romanceiro gitano - foi realizada pelo goiano Afonso Félix de Sousa (García Lorca, 1957), sendo lançada no Rio pela Civilização Brasileira, isto é, treze anos depois de que o público carioca pudesse assistir à estréia de Bodas de sangre.
No entanto, em fevereiro de 1944, bem antes do lançamento da tradução de Félix de Sousa, poemas esparsos de Lorca foram publicados pela carioca Revista Leitura e, uns meses depois, pela paulistana Revista Letras, mas essas composições foram apresentadas na sua língua original. Os poemas reproduzidos por essas duas revistas procediam dos livros Primeras canciones (1922), Romancero gitano (1928), Poeta en Nueva York (1929-30), Seis poemas galegos (1935) e Diván del Tamarit (1936)[3]. Com a tradução do Romancero gitano feita por Félix de Sousa inaugurou-se uma característica bastante particular relativa às traduções da poesia de Lorca no Brasil, extensível também ao teatro. Ela consiste no fato de um mesmo produto lorquiano receber, ao longo de meio século, três traduções diferentes ao português brasileiro.
Dezessete anos depois da tradução de Félix de Sousa, o Romancero gitano será traduzido por Oscar Mendes (1974) e, em 1989, a editora Martins Fontes, em parceria com a editora da UnB, lançará a tradução de William Agel de Melo, incluída na tradução da obra poética completa de Lorca.
Entretanto, foram também publicadas seleções de poemas de Lorca procedentes de diversos livros de poesia em que se observam novas traduções. Assim, em 1988, apareceu a obra Poemas e canções, com seleção, tradução e introdução de Luiz Roberto Benati (García Lorca, 1988). Dez anos depois se lançou Poemas de amor: remansos de amor: antologia, com tradução de Floriano Martins (García Lorca, 1998) e, em 2003, José Paulo Paes (García Lorca, 2003) publicou sua seleção traduzida de versos de Lorca, intitulada Os encontros de um caracol aventureiro e outros poemas.
Se antes da morte de Lorca é escasso o conhecimento havido no Brasil da sua obra, por sua vez, na produção dele não são percebidos elementos que denotem transferências ou intertextualidade em relação ao campo literário brasileiro.
Por outro lado, na correspondência que se conserva de Lorca também não aparecem alusões ao Brasil. Suspeitamos que, além do quadro com as borboletas espetadas que ganhara de Alfonso Reyes, da menção do topônimo “Brasil” por um dos personagens de Así que pasen cinco años e de uma humorística alusão a Santos Dumont na peça teatral Doña Rosita la soltera o el lenguaje de las flores[4], o único vínculo proposital estabelecido pelo poeta andaluz com o Brasil se derivou de seu empenho em se pôr ao serviço de causas solidárias vinculadas à ideologia marxista. Nesse sentido, o historiador irlandês (Gibson, ibidem, p. 478) assinala que os meses de março e abril de 1936 foram especialmente significativos na demonstração, por parte de Lorca, de sua vontade de aparecer engajado e comprometido com posições políticas “progressistas”. É preciso assinalar que aos 18 de julho de 1936 desmanchara a rebelião militar que desembocou na Guerra Civil espanhola (18.07.1936-01.04.1939).
Nesses meses prévios ao enfrentamento fratricida entre espanhóis, Lorca lera alguns de seus poemas em um grande comício esquerdista do Clube Operário de Madri, incluindo o instigador “Romance de la Guardia Civil Española” que integrava o Romancero gitano. Além disso, filiara-se, por um lado, à então recém-criada Associação de Amigos da América do Sul, dedicada a combater a ditadura de Miguel Gómez, em Cuba, e o governo constitucional do Dr. Getúlio Vargas e, por outro, à dos Amigos de Portugal, fundada com a finalidade de informar o público espanhol sobre o Estado Novo estruturado pelo Prof. António de Oliveira Salazar.
Foto com Luiz Carlos Prestes
Entre o material documental inédito incorporado por Ian Gibson na sua aproximação ao retrato de Lorca, consta uma fotografia em que se pode reconhecer o poeta andaluz recitando durante um ato de solidariedade com o militar, por então stalinista, Luiz Carlos Prestes, organizado pelo Socorro Rojo Internacional e celebrado na Casa del Pueblo de Madri, em 28 de março de 1936. Essa foto tornou-se parte de uma fotomontagem publicada em Mundo Obrero, aos 30 de março daquele ano; rodeando o palanque do qual Lorca declama e gesticula com aparente exaltação, há uma faixa em que está escrito “Salvad a Carlos Prestes”.
A análise das representações de Lorca no Brasil vem sendo assumida desde há uma década por alguns críticos literários brasileiros e espanhóis envolvidos no estudo do processo de recepção neste país da circunstância do literato. Esses pesquisadores esboçaram, por um lado, o mapeamento da publicação da produção lorquiana traduzida ao português do Brasil.
Por outro, estudaram a transferência da obra plástica surrealista de Lorca à pintura brasileira, as características das representações de sua obra teatral no território nacional e, em geral, as vias de incorporação do autor e de elementos de seu corpus literário ao repertório da cultura brasileira. Junto à reconstrução desenvolvida em vários trabalhos acerca dos passos seguidos pelas significações de Lorca até a sua inserção no repertório brasileiro, há um considerável conjunto de ensaios que ora divulgam aspectos relativos à obra do poeta andaluz, ora a comentam mediante glosas, ora a criticam academicamente.
Dentre os trabalhos realizados no Brasil sobre a repercussão e as representações da produção lorquiana, os de Teles (1998), Hernandes (2002) e Willer (1998 e 2002) são os mais abrangentes. Da parte espanhola, Luisa Trias Folch (2004) acrescentou algumas valiosas informações sobre as transferências de Lorca no Brasil na década de 1940, as quais completaram os levantamentos dos outros autores, cujos estudos são anteriores no tempo. O artigo de Gilberto Mendonça Teles foi apresentado no encerramento dos atos que, ao longo de 1998, se celebraram na cidade de Salamanca para comemorar o centenário do nascimento de Lorca; ele levanta um âmbito de investigação que aprofundaram as análises que o seguiram. Antes de apresentar um estudo sobre o deslocamento da produção de Lorca à lírica brasileira, esse artigo, embasado em digressões sobre as teorias comparatistas e sobre os rescaldos positivistas que ainda as oprimem no Brasil, parte da consideração de que as noções de contexto e intertextualidade relativas aos produtos, às suas ideologias e às suas tendências transformadoras exigem deter-se tanto na observação da complexidade de relações tecidas entre os objetos literários quanto nos horizontes de expectações construídos ao seu redor. Umas relações que para Teles não são unilaterais, isto é, não se trata de hegemônicas influências de fontes européias vertidas verticalmente em um atrofiado e submetido imaginário brasileiro, senão de discursos paralelos e intercruzados entre a Europa e o Brasil que patenteiam a dimensão paradigmática e dinâmica dos textos que se desejam comparar no espaço da Poética.
Poetas brasileiros prestigiam o espanhol
No sistema literário brasileiro são apontados por Teles (1998) os componentes de uma plêiada de jovens poetas colaboradores com o regime de Getúlio Vargas - Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Murilo Mendes - que começaram a divulgar seus versos na década de 1930 e que se converteriam em admiradores da obra de Lorca. Segundo Teles, esses escritores, no entanto, só começaram a escrever sobre Lorca ou a incorporar referências “solidárias” a Lorca em seus versos após a intervenção militar que derrubou o Estado Novo[5]. O autor de A poesia em Goiás acredita que a década transcorrida entre o fuzilamento de Lorca e a difusão das primeiras composições sobre o poeta andaluz lavradas por autores brasileiros deveu-se a temores perante a possibilidade de causar desagrado à censura que exercia o DIP mediante um férreo controle dos periódicos e da produção artística, dada a relativa tolerância mantida entre 1939 e 1945 pelo regime corporativo de Vargas a respeito da ditadura nacional-sindicalista do caudilho Francisco Franco. Apesar dos receios dos intelectuais brasileiros a quebrantar o silêncio imposto pelo DIP que aponta Teles para explicar a escassez de reações em relação à Guerra Civil espanhola (1936-1939), criaram-se brechas que permitiram materializar as manifestações de adesão à causa da II República espanhola. O historiador José Carlos Sebe Meihy (1993, p.47) destacou que, em 1941, Monteiro Lobato traduziu do cárcere o romance de Hemingway Por quem os sinos dobram. Por sua vez, Thaís Battibugli (2004, p. 185) assinalou que, em 1939, Érico Veríssimo publicou o romance Saga (Veríssimo, 1940), cujo argumento recolhe as difíceis e dramáticas situações enfrentadas pelos revolucionários brasileiros que se alistaram voluntariamente nas Brigadas Internacionais que foram lutar na Espanha em favor da causa republicana. Uma mais tardia referência ao conflito espanhol aparece em Agonia na Noite (Amado, 1986), segundo volume da trilogia Subterrâneos da Liberdade, cuja publicação iniciou-se em 1956. Entre outros assuntos, em Agonia da noite narra-se a greve deflagrada pelos estivadores do porto de Santos que se recusaram a carregar café destinado às zonas de Espanha controladas pelo exército de Franco (idem, ibidem, p. 17-104) e a participação de voluntários brasileiros que viajaram à Espanha para defender a II República militando nas Brigadas Internacionais (idem, ibidem, p. 159-71). A vacilação para escrever sobre Lorca não pode, portanto, ser explicada por um temor a provocar à censura, como acredita Teles (1998):
Os escritores mencionados, agora com os seus quarenta anos e já conhecidos como grandes poetas, só começam, entretanto, a escrever sobre García Lorca depois da queda do Estado Novo. Parece que tiveram algum receio de desagradar a censura da época. Lorca havia sido fuzilado pelo governo espanhol, e não se sabia bem por quê, possivelmente por atuação comunista, como se pensava e não se dizia. A repressão ao comunismo veio dos Estados Unidos e cresceu no Brasil, só terminando recentemente, por verdadeira inanição mental.
A essa opinião de Teles podem-se aderir várias ressalvas. Por um lado, é preciso dissociar a lenta inserção da obra de Lorca no Brasil de qualquer proibição ditada pelo Estado Novo. Nem o DIP nem os DEOPS barraram, durante os regimes de Vargas, as encenações das peças teatrais de Lorca ou impediram a publicação de artigos de opinião, resenhas, ensaios ou homenagens ao poeta e dramaturgo andaluz. De fato, as obras dele nunca foram apreendidas ou confiscadas. Além disso, Lorca não foi fuzilado pelo “governo espanhol” senão por uma hoste formada por para-militares fascistas e militares golpistas cujo regime só foi reconhecido por Vargas em 28.03.39 (Vargas, 1995, p. 204-05). O que sim poderia ter sofrido contumaz perseguição seria o uso, ou a reivindicação de Lorca, para fins de oposição aos princípios do Estado Novo. Por outro, deve-se considerar que a defesa da legitimidade da República espanhola esteve estreitamente relacionada, após a sua derrota pelo exército de Franco e de seus aliados nazi-fascistas, com os posicionamentos políticos do comunismo internacional. Nesse sentido, cabe mencionar o uso do nome “Federico García Lorca” por organizações políticas e culturais vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) legalizado entre 1945 e 1947.
Em 2004, no Arquivo Público Mineiro, tive acesso às pastas do DEOPS de Minas Gerais que continham a documentação apreendida, aos 12 de maio de 1947, sobre as atividades realizadas pelo Comitê Municipal de Belo Horizonte da Associação Brasileira dos Amigos do Povo Espanhol (ABAPE), entidade de caráter “democrático popular” que fora criada em 29 de junho de 1945, no salão da Associação Brasileira de Imprensa, do Rio de Janeiro, para apoiar e defender “os ideais de fraternidade universal em geral e da democracia espanhola, em particular” (Estatutos, 1945). No n. 3 do Boletim da ABAPE - “Número especial dedicado ao 10º aniversário da Resistência Espanhola” (03.07.1946) - há três artigos em que se cita Lorca.
O periódico abre-se com um texto de E. Mira López (1946, p. 1-3) intitulado “18 de julho, data culminante da história da Espanha”. Nele associa-se a Espanha “liberal” a Lorca, ao fundador do Partido Socialista Operário Espanhol e a Pasionaria, a mais famosa líder comunista espanhola durante a Guerra Civil (idem, ibidem, p. 2). Mais adiante, no artigo intitulado “Nossa dívida com a Espanha”, Moacir Werneck de Castro (1946, p. 5) insere uns versos tirados da Cena Quinta de La zapatera prodigiosa para enfatizar a necessidade de que o Brasil se solidarizasse com a Espanha, e Alberto Palacios (1946, p. 7) encerra seu artigo “Salvemos os presos políticos da Espanha” com uns versos apócrifos de Lorca dos quais se chegou a dizer que foram declamados pelo poeta antes de ser fuzilado.
Além da documentação apreendida relativa à ABAPE, na pasta do DEOPS também constavam alguns textos relacionados com o “Ateneu García Lorca”, uma associação civil de caráter cultural fundada em 16 de julho de 1946 que tinha por objetivos fundamentais “divulgar a arte, a literatura e ciências da Espanha, promover cursos de língua, literatura e história espanholas” e “desenvolver as relações culturais entre o Brasil e a Espanha e colaborar com as instituições universitárias e culturais em geral, para o fortalecimento dos laços de solidariedade espiritual e democrática entre ambos os povos” (Projeto de Estatutos, 1946). Perceba-se que tanto a ABAPE quanto o “Ateneu García Lorca” foram intervindos em maio de 1947, data da cassação do registro do PCB pelo Supremo Tribunal Federal. Nos meses seguintes aconteceu a repressão das organizações que seguiam as orientações do Partido Comunista, entre as quais parece que figuravam as duas associações mencionadas.
Em relação à vinculação do símbolo “Lorca” com posicionamentos políticos, cabe mencionar que o poema de Manuel Bandeira (1993, p.196-97), “No vosso e em meu coração”, não é estritamente uma elegia a Lorca, senão a acareação entre alguns dos elementos de repertório associados com a II República e as representações do fascismo e da reação monarquista em que ancora a sua identidade o autoritarismo do Estado imposto pelo general Franco[6]. Nele, Bandeira liga a Lorca a aposição “irmão assassinado em Granada”, um “irmão” de quem posteriormente traduziria dois poemas[7]. Teles (1998) opina que a estrutura estrófica de “No vosso e em meu coração” - um romance - é tanto um reflexo do encantamento de Bandeira com o Romancero gitano quanto uma conseqüência da vontade de aproximação rítmica aos metros lorquianos. Porém, frente ao parecer de Teles, pode-se considerar que, dado que Lorca simplesmente é uma das quinze referências que compõem o leque da exaltação republicana de Bandeira, os setissílabos e as rimas assonânticas nos versos pares do romance de Bandeira não são mais que uma transposição do romance popular castelhano, vigente, ademais, em toda a Península Ibérica entre a Idade Média e o Barroco e transplantado ao Nordeste brasileiro no início de período colonial[8]. O paroxismo relativo a escrever sobre Lorca e conectar essa escritura com posturas ideológicas de esquerda observa-se ainda no comentário publicado em 1981 por Paulo de Tarso Jardim (Jardim, 1991, p. 193) na Revista de Poesia e Crítica em relação à temática da poesia de Félix de Sousa: “O livro seguinte, Memorial do errante (1956), apesar de incluir um Pranto por Federico García Lorca, bem como os Tercetos de Leningrado, não pode ser considerado sob o ponto de vista do engajamento. Há nele bons poemas, como alguns dos Sonetos de Olinda, que acabam compensando o caráter fragmentário do livro.”
A influência de Lorca
Assim como Gilberto Mendonça Teles, em 1998, ano do centenário do nascimento de García Lorca, o poeta, ensaísta e tradutor Cláudio Willer, publicou artigos e deu palestras sobre o poeta andaluz. Em Como ler García Lorca? (Willer, 1998), inicia sua exposição mencionando os autores brasileiros que, ou escreveram poemas sobre Lorca, ou citaram-no e parafrasearam-no com liberdade. Por um lado, assinala que se deve salientar, além de Drummond e Vinícius de Moraes, já destacados por Teles (1998), Paulo Mendes Campos, autor da “Ode a Federico García Lorca” (1958, p. 11-15), na qual se apresenta um diálogo impossível com o interlocutor desaparecido. Por outro, agrupa três autoras vinculadas à geração de 45 - Hilda Hilst, Lupe Cotrim Garaude e Renata Pallottini - com um adepto da associação de cartaz, poesia e espetáculo através do “poema-objeto”, Lindolf Bell, e com o transgressor e delirante Roberto Piva, todos eles produtores de poemas de intertextualidade lorquiana.
Embora não desenvolva uma análise, Willer (1998) acredita que se poderia desenvolver um estudo sobre a influência de Lorca no Brasil a partir de uma cisão na procedência dos elementos de repertório transferidos. Nesse sentido, haveria um grupo de autores em que a intertextualidade de sua obra focalizaria o Lorca do Romancero gitano, frente a outros que tomariam o Lorca de Poeta en Nueva York. Indica, ademais, dois temas que deveriam atrair a atenção da pesquisa. Esses seriam, em primeiro lugar, a difusão oral da poesia de Lorca, na qual destacaria a declamadora e poeta Mariajosé Carvalho e, em segundo lugar, a encenação de suas peças.
Centrando-se na cidade de São Paulo, Willer frisa que a partir de 1968 a reivindicação de Lorca, e as homenagens a ele, transfiguraram-se em mobilização política contra a ditadura de Franco e contra os governos militares formados a partir da “redentora” revolução do 31 de março. Nesse uso de Lorca participaram, junto a intelectuais brasileiros, os imigrantes espanhóis integrantes do “Centro Galego-Centro Democrático Espanhol”. Assim se tratando, a primeira atuação de relevo foram os atos promovidos no Teatro Municipal e na Biblioteca Mário de Andrade em favor da inauguração, na Praça das Guianas, do monumento a Lorca realizado por Flávio de Carvalho. Um ano após a instalação do monumento, na madrugada do 26 de julho de 1969, algumas explosões reduziram a escultura de Flávio de Carvalho a pedaços de ferro espalhados pelo jardim da Praça. Nunca se apuraram os verdadeiros autores do atentado, mas foi atribuído a organizações de extrema direita, possivelmente o CCC [Comando de caça aos comunistas]. No Arquivo Histórico da Sociedade Hispano-Brasileira de Socorros Mútuos conservam-se tanto o programa do Teatro Municipal de São Paulo referente ao espetáculo “García Lorca Vivo”, quanto uma matéria intitulada “São Paulo inteiro homenageia Lorca”, publicada aos 28 de setembro de 1968 pela Folha de São Paulo[9].
O poeta na internet
Luciana Carneiro Hernandes (2002) estudou a presença de Lorca em sites brasileiros, sobretudo a partir da década de 1990. A autora levantou citações a Lorca em todo tipo de textos. A falta de uma delimitação na pesquisa de campo foi justificada pela autora argüindo que os textos “periféricos”, embora tivessem uma importância secundária para o estudo acadêmico da obra de Lorca, poderiam ser considerados de grande valia para marcar o grau de importância na influência do polígrafo andaluz na composição das representações sobre a Espanha em alguns campos sociais brasileiros, devido à possibilidade de ampla divulgação que facilita a rede.
Hernandes partiu da suposição de que as imagens de sucesso sobre a Espanha criadas no Brasil evocam principalmente estereótipos andaluzes estreitamente ligados a Lorca: o folclore árabe-andaluz, a arquitetura e os jardins mouriscos, as touradas, o flamenco e clichês estéticos ciganos. A pesquisadora não se baseia em nenhuma investigação antes de asseverar taxativamente que as representações mediterrâneas e andaluzas forjadas no Brasil sobre a Espanha são as que receberam uma maior acolhida; manifesta, simplesmente, que acredita que as imagens exóticas inerentes a essas representações se adequam às impressões consuetudinárias consolidadas no imaginário dos brasileiros acerca desse país da Península Ibérica.
Acha, além disso, que a caricaturesca simbologia dos signos “Andaluzia, touradas e flamenco” contém nuanças mais agradáveis que a de “terra árida, fidalgos e vassalos e os moinhos de vento” emanada do Quixote.
Os trabalhos sobre a recepção da obra de Lorca no Brasil, acima destacados, mostram que as transferências de elementos do repertório lorquiano não se restringem ao sistema literário senão que abrangem diversos campos sociais interessados em construir e utilizar representações da Espanha alicerçadas nos reflexos simbólicos recebidos da produção do autor andaluz. Essa multifacetada recepção projetou-se também nas traduções que obteve a produção do poeta, especialmente enfrentadas entre si no modo de trasladar ao português as figuras de pensamento e de linguagem, enfrentamento ao que não são alheias as duas traduções “goianas” da poesia lorquiana.
Os onze Sonetos do Amor Obscuro, escritos entre 1935 e 1936, foram publicados por primeira vez aos 17 de março de 1984, em uma separata do suplemento cultural do diário ABC, de Madri. No momento de sua publicação, não houve entre a crítica literária espanhola nenhuma dúvida em relação ao fato desses sonetos amorosos reafirmarem a genialidade do autor. Porém levantaram-se acirradas polêmicas sobre se eles confirmavam a homossexualidade do poeta. As discordâncias começaram já pelo título que deveria receber a série de poemas. Segundo Gibson (ibidem, p. 438), não existe documento conhecido em que Lorca aluda aos seus sonetos sob o título geral dos Sonetos del amor oscuro: a fonte principal no que se refere a essa denominação é Vicente Aleixandre, que a ouviu do próprio Lorca e em 1937 recordou uma leitura privada dos poemas alguns meses antes da morte do autor. Quando ele acabou de ler, Aleixandre exclamou: “Que coração! Como deve ter amado! Como deve ter sofrido!”.
O crítico e editor de Lorca, Miguel García-Posada (1984, p. 33), acreditou ao resenhar esses poemas que o simples rótulo Sonetos transmitia de forma mais precisa os perfis do projeto poético que Lorca estava desenvolvendo quando foi assassinado, deixando inconcluso seu propósito de compor poesia seguindo uma poética mais classicista, frente à concepção surrealista seguida em Poeta en Nueva York:
¿Y el mítico título de Sonetos del amor oscuro? Diversos amigos de Lorca, desde Aleixandre a Cernuda, lo han mencionado, y sin duda se lo oyeron al poeta. Basta leer el soneto que comienza: ‘Ay voz secreta del amor oscuro...’ ¿Por qué no lo adoptó el autor de modo definitivo? Aquí se entrecruzan dos problemas [...]. El primero afecta al alcance del sonetario proyectado. Por diversos testimonios coincidentes es lícito inferir que el libro en preparación no iba a constar solo de poemas amorosos. Luis Rosales ha transmitido el título de Jardín de (o de los) sonetos y precisado que el conjunto final iba a constar de dos secciones: una, en la que entrarían los sonetos de amor de 1935-36, [...]; y otra, en la que se agruparía el resto de los sonetos escritos desde 1924.
A partir dessa divergência, que também se refletirá nas traduções de Félix de Sousa e Agel de Melo, surge uma outra discrepância. Para Gibson apresenta-se como inegável que o adjetivo “oscuro” [escuro] aplicado por Lorca ao amor tem um sentido manifestamente homossexual. O biógrafo de Lorca baseia-se na análise das vivências do poeta, durante suas estadias na cidade de Valencia, em 1933 e 1935, para relacionar três dos sonetos com dois amigos do poeta. Assim, “Soneto de la carta” e “El poeta dice la verdad” refletiriam as preocupações, a saudade e o descontentamento de Lorca a respeito do seu relacionamento com Rafael Rodríguez Rapún e o “Soneto gongorino en que el poema manda a su amor una paloma” estaria relacionado com a amizade de Lorca com o poeta valenciano Juan Gil-Albert, homossexual assumido que o presenteara com uma pomba engaiolada. Ao contrário do parecer de Gibson, García-Posada (ibidem, p. 33-34), no prólogo da primeira edição completa dos Sonetos, opinou veementemente que o “amor escuro” do poeta andaluz era, simplesmente, um amor secreto, ausente, um amor que mata ou faz morrer.
Esse crítico achava, em 1984, que os sonetos de Lorca estavam longe da literatura pederasta e que neles brotava uma conceição cósmica do amor, fruto de um “pan-sexualismo” vinculado à moral do amor, distante da corrupção e da vileza que sujam e prostituem o sentimento amoroso. Vinte anos depois de escrever sua apologia do “pan-sexualismo” lorquiano refletido nos Sonetos, no prólogo à edição da Poesia Completa III, García-Posada (2004, p. 20) abandonou sua alucinada peneira moralista e praticamente contradisse o que anteriormente expusera com irritado tom taxativo. Assim, em 2003 escreveu que foi a relação com Rafael Rodríguez Rapún o que inspirou a série inconclusa dos “sonetos do amor escuro” e que eles são um inequívoco canto de paixão e de temor à perda do amor. Além disso, inseriu o rótulo Sonetos del amor oscuro como subtítulo de Sonetos.
Parece que o litígio que acompanhara o debate acerca da “escabrosidade” escondida nos sonetos amorosos de Lorca refletiu-se tangencialmente nas traduções realizadas pelos dois intelectuais goianos que os verteram ao português do Brasil. A disparidade das traduções nada tem a ver com o conteúdo escatológico dos versos, senão que é a conseqüência de concepções diferentes do modo de traduzir, mas essa insimilaridade transmite hermenêuticas que fornecem aos consumidores brasileiros das duas traduções cotejadas a possibilidade de perceber holismos diferentes do sentido da poética de García Lorca. Como já foi mencionado acima, ambos os tradutores não se limitaram a transladar os Sonetos à língua portuguesa; inclusive, pode-se inferir que essas traduções constituem o final do labor empreendido por eles, como tradutores, em relação à poesia de Lorca. Antes de publicar em 1988 a sua tradução dos Sonetos do amor obscuro e do Divã do Tamarit, Félix de Sousa traduzira o Romancero gitano a meados da década de 1950 e também compusera dois poemas dedicados ao escritor andaluz, o “Pranto por Federico García Lorca” e “A García Lorca”[10]. Por sua vez, Agel de Melo só incorporou a tradução de nove dos onze sonetos del amor oscuro na 3ª edição bilíngüe da Obra poética completa de Lorca. Com certeza, o interesse de Agel de Melo pela poesia lorquiana surgiu na década de 1960, quando exerceu a função de cônsul no Consulado Geral do Brasil em Barcelona[11].
A primeira divergência nas traduções dos sonetos “póstumos” de Lorca localiza-se no título adotado para o conjunto de poemas. Félix de Sousa opta por traduzir o título espanhol Sonetos del amor oscuro como “Sonetos do amor obscuro”. Até 2003, ano em que se consolidou o título Sonetos del amor oscuro, nas edições espanholas e hispano-americanas desses sonetos oscilara-se entre os títulos Sonetos, Sonetos amorosos, Sonetos de amor e Sonetos del amor oscuro. Félix de Sousa, baseando-se no testemunho de Vicente Aleixandre, na escolha já feita por uma edição argentina acerca do título desses sonetos y no verso “¡Ay voz secreta del amor oscuro!” com que se inicia um dos poemas (García Lorca, 2004, p. 206), decide apor “del amor oscuro” a Sonetos. Aliás, ele discerniu que o título “sonetos do amor obscuro” era simplesmente mais belo e sugestivo, e menos pudoroso, que “sonetos do amor” e que o adjetivo enfatizava a condição clandestina em que era vivido esse amor. Ora, o que não ficou esclarecido é por que ao traduzir oscuro ao português, Félix de Sousa coloca “obscuro”, e não “escuro”, sobretudo se é levado em consideração, por um lado, que, assim como em português existem os adjetivos “obscuro” e “escuro”, em espanhol existem os adjetivos obscuro e oscuro, suas equivalências sinônimas, e por outro, que, caso Lorca, segundo asseverou Vicente Aleixandre, tivesse qualificado amor com um adjetivo, esse adjetivo espanhol foi oscuro e não obscuro. Ao incorporar por primeira vez nove dos Sonetos à sua tradução da Antologia poética completa, Agel de Melo intitulou a série de Sonetos inéditos, evitando assim os devaneios em torno da polêmica do título. Nessa série, Agel de Melo reuniu catorze sonetos; além de nove dos onze que García-Posada denomina Sonetos del amor oscuro na última antologia poética de Lorca editada na Espanha à que tivemos acesso (idem, ibidem), constam dois dos sonetos incorporados por García Posada no rótulo Otros sonetos[12], um soneto - “La mujer lejana” - inserido por García Posada no grupo Poemas sueltos (García Lorca, 1989, p. 446) e outros dois sonetos (“Yo la he visto pasar por mis jardines” e “El viento explora cautelosamente”, compostos por Lorca em 1918 e 1923, respectivamente. Os dois “sonetos del amor oscuro” (“Soneto de la dulce queja” e “El poeta pide a su amor que le escriba”) que não figuram entre os Sonetos inéditos da tradução de Agel de Melo, estão englobados em uma outra série, a dos Poemas esparsos (“Tenho medo a perder a maravilha” e “O poeta pede a seu amor que lhe escreva”, respectivamente). Infelizmente, esses dois “sonetos del amor oscuro” são os únicos que constam na 5ª edição da Obra poética completa traduzida por Melo (García Lorca, 2004b), pois nela foi eliminada a seção Sonetos inéditos que fora acrescentada à 3ª edição. No entanto, na 1ª edição da antologia poética de Lorca publicada pela Martins Fontes (García Lorca, 2001), contendo, segundo nota do editor, aqueles poemas considerados por Melo como os mais significativos da obra de Lorca e também os mais populares entre os brasileiros, constam cinco “sonetos do amor escuro”: “O poeta pede a seu amor que lhe escreva”, “Soneto da grinalda de rosas”, “O poeta diz a verdade”, “[Ai, voz secreta do amor escuro!]” e “O amor dorme no peito do poeta”.
A segunda divergência entre Félix de Sousa e Agel de Melo reside em compreensões parcialmente opostas do trabalho de tradução. A relativa dissensão entre os tradutores não parte de diferentes graus de possessão das competências que, segundo Roda P. Roberts e Jean Delisle (Roberts, 1984 apud Delisle, 1996, p. 72-73), deve haver assimilado o tradutor profissional, embora nem Sousa nem Melo tenham publicado traduções de textos não literários+[13]. Parte, sim, do filtro utilizado por esses tradutores perante a recepção do sentido dos sonetos e manifesta-se nos conseqüentes textos equivalentes por eles produzidos em português após uma série de tomadas de decisão. Na “Introdução” aos Sonetos do amor obscuro, Sousa (2002, p. 12) expôs sua latente estrutura de expectativas em relação à orientação que ele seguiu para combinar o expressado em espanhol nos sonetos com formas correspondentes brasileiras:
Ao traduzir estes sonetos, procurei fundir o mais possível os recursos proporcionados pelas duas línguas irmãs. A fim de que ao menos se mantivessem próximos da unidade harmônica original, tive que proceder a inversões, alterar ou sacrificar (muitas vezes com sacrifício também meu) uma e outra palavra e imagem, buscar equivalências que em certos casos apenas roçam o sentido. Tinha que ser assim. A tradução destes sonetos não podia ser uma versão literal e portanto esquelética, mas uma tentativa de alcançar em português o reflexo da beleza dos sonetos em castelhano. Não fosse assim, seria melhor não traduzi-los.
Sousa afirma que, após captar o sentido dos versos lorquianos e de liberá-los da sua embalagem verbal original, reescreveu-os utilizando os recursos da língua portuguesa; porém, às vezes, essa re-expressão desembocou no distanciamento semântico em relação ao sentido primigênio. Portanto, de uma visão funcionalista, Sousa prefere privilegiar a recepção de um determinado sentido do texto na cultura de chegada, ainda que para atingir esse objetivo tenha que subordinar ao “fim” o conjunto do processo da translação. Por sua vez, na “Apresentação do tradutor” da Obra poética completa, Agel de Melo (1996, p. XXIX-XXX) salienta que, embora fugisse da tradução literal, procurou não modificar as imagens criadas na língua original:
O fato é que a tradução implica uma escolha, dentro de um processo seletivo que melhor sirva aos desígnios de transmitir a realidade de uma língua para outra. É uma escala de valores, cujo ponto mais baixo é a tradução literal, a que mais se aproxima do texto original. A partir de aí, a tradução admite uma série de gradações, inclusive a recriação, na qual o tradutor altera substancialmente a linguagem, mas conserva a integridade de sentido. [...] Traduzir é acima de tudo um ato de humildade. É respeitar a vontade do autor como um testamento, transmitindo o seu pensamento da maneira mais exata possível. [...] Traduzir é traduzir. É não ultrapassar os limites da obra em questão. O tradutor tem a obrigação de refletir a imagem o mais nitidamente possível. Não embelezar o texto, a ponto de o trecho traduzido suplantar o original. Não procurar corrigir os erros de qualquer natureza [...]. E nisso consiste uma das tarefas mais difíceis da tradução.
O resultado dessas interpretações com nuanças enfrentadas sobre os percursos da tradução é a criação de textos diferentes, devido sobretudo aos procedimentos seguidos para estabelecer equivalências textuais interlingüísticas, isto é, para criar a identidade de sentido dos sonetos de Lorca em espanhol e em português, mantendo as mesmas, ou quase as mesmas, denotações e conotações. Isso se comprova em qualquer um dos sonetos lorquianos traduzidos por Sousa e Melo.
Assim se tratando, se são cotejadas as suas traduções daquele que, desde a primeira edição de 1984, se apresenta como o primeiro dos sonetos del amor oscuro - o “Soneto de la guirnalda de rosas” (García Lorca, 2004, p. 201) - observa-se que em cinco versos a dissonância das traduções tem um cunho estilístico e que só quatro dos versos coincidem em forma e sentido na língua de chegada dos produtos gerados por ambos os tradutores. Trata-se dos versos espesura de anémonas levanta (7º), quiebra juncos y arroyos delicados (11º), boca rota de amor y alma mordida (13º) e el tiempo nos encuentre destrozados (14º), traduzidos respectivamente, tanto por Sousa (García Lorca, 2002, p. 23) quanto por Melo (García Lorca, 1996, p. 689), como “espessura de anêmonas levanta”, “quebra juncos e arroios delicados”, “boca rota de amor e alma mordida” e “o tempo nos encontre destroçados”. Contudo, a discordância na tradução de cinco versos é estrema. ¡Esa guirnalda! ¡pronto! ¡que me muero (1º), ¡Teje deprisa! ¡canta! ¡gime! ¡canta! (2º), y otra vez viene y mil la luz de Enero (4º), bebe en muslo de miel sangre vertida (11º) e Pero ¡pronto! Que unidos, enlazados (12º) são traduzidos, respectivamente, por Sousa como “Eu morro! Que a grinalda bem ligeiro”, “teças! E pronto! canta! geme! canta!”, “e vêm de novo as luzes de janeiro”, “Sangue em coxa de mel bebe em seguida”, “E pronto! Agora unidos, enlaçados”. Melo, porém, traduz esses versos como se segue: “Essa grinalda! Pronto! Estou morrendo!”, “Tece depressa! Canta! Geme! Canta!”, “e outra vez e mil a luz de janeiro”, “Bebe em coxa de mel sangue vertido”, “Porém, pronto! Que unidos, enlaçados”.
Ambos os mediadores rejeitaram a tradução literal, ou “palavra por palavra” na etiqueta criada por García-Yebra (1982, p. 407), apesar da escassa distância estrutural entre os textos escritos em espanhol e em português, para, assim, evitar cair na cilada de forjar combinações lingüísticas, aparentemente pertinentes, mas que afastam a linguagem do texto traduzido dos meandros estilísticos do texto original. Aplicando-se a perspectiva do “enfoque variacional”, observa-se que Sousa, na sua concepção da tradução, parece acreditar que a versão final dos sonetos em espanhol de Lorca não é mais que uma das possibilidades de uma escala de variação que admitiria um feixe de paráfrases susceptíveis de expressar o mesmo significado. Assim, quando ele traduz escolhe a opção que considera mais acertada dentro de uma escala de variação análoga na língua portuguesa guiando-se por uma “equação cultural” que incluiria seu conceito de mediador em relação à tradução, o papel desempenhado pelas traduções nas relações interculturais e as convenções que estipularam os agentes que encomendaram a tradução. Por sua vez, Melo também assume a dupla condição de mediador dos sonetos de Lorca e de redator deles na língua portuguesa, mas no exercício de sua função de interlingüista tenta repetir a presumível intencionalidade do autor manifestada no texto final em língua espanhola, prescindindo das possíveis paráfrases que o texto poderia ter na língua de partida e abstendo-se de construir novas representações da poética de Lorca por meio do exercício da tradução.
O poeta espanhol, nascido em 1898 na província de Granada, morreu fuzilado em 1936, menos de um mês após o início da Guerra Civil espanhola. No ano seguinte, Mauro de Alencar inaugurou nossa fortuna crítica de Lorca com um artigo intitulado “Vida, mundo e obra de Federico García Lorca”, publicado na revista Rumo, no Rio de Janeiro.
Por Antón Corbacho Quintela*
Mais de uma dezena de consagrados poetas brasileiros dedicou composições a Lorca e, em 1989, sua obra poética completa foi, por primeira vez, traduzida ao português pelo diplomata e intelectual goiano William Agel de Melo.
As tragédias de Lorca começaram a ser encenadas em 1944 e Heitor Villa-Lobos (1956) baseou-se na peça de teatro Yerma para compor, entre 1955 e 1956, a ópera homônima. Em 1976, o cantor e compositor Fagner musicou Bodas de Sangre e, para o LP em homenagem a Federico García Lorca - Poetas em Nova York -, lançado mundialmente em 1986, Fagner musicou e cantou, junto a Chico Buarque, o poema “A Aurora”, traduzido, ad hoc, ao português, por Ferreira Gullar.
“Zorongo Gitano” é o título dado por Edson Cordeiro em 1994 a sua interpretação musicada do poema “A Antonio Mairena, Cantador de Flamengo”, de João Cabral de Melo Neto. Nesse caso, o cantor preferiu retirar o título original do poema e inserir o título de uns versos de Lorca [Zorongo] que, estrutural e tematicamente, não estão relacionados com a composição de João Cabral, a não ser pela comunhão da atmosfera flamenca. Parece que o cantor pretendeu enfatizar a circunstância andaluza da composição de João Cabral aludindo a um produto de Lorca, o qual transmite a impressão de que, para Cordeiro, estava latente uma mimese do folclore musical andaluz na obra de Lorca.
O autor espanhol também foi objeto, mais recentemente, de composições dentro da música erudita. Em 1981, o compositor e regente Ricardo Tacuchian (1979) apresentou no Rio de Janeiro sua obra Ciclo Lorca, para barítono, clarineta e orquestra de cordas, em que se incluíam cantatas baseadas nos produtos “A Federico”, de Carlos Drummond de Andrade, “Em Granada”, de Alphonsus de Guimaraens Filho, “Canto a García Lorca”, de Murilo Mendes e “Epílogo”, de Carlos Drummond de Andrade. Recentemente, o compositor, músico e professor na Escola de Música da UFRN, Danilo Guanais, compôs uma Homenagem a García Lorca, para flauta e violão.
Um exemplo da popularização da poesia canonizada de Lorca pode-se observar, por um lado, na seleção publicada pela Folha de São Paulo, em janeiro de.2000, com “Os cem melhores poemas internacionais do século XX”. No sexto “lugar” esse jornal escolheu o Pranto por Ignacio Sánchez Mejías.
Por outro, essa popularização, isto é, a tentativa de que o corpus canonizado de Lorca chegue às massas, percebe-se na edição, economicamente acessível, lançada em 2001, no Rio de Janeiro e em São Paulo, de uma antologia de poemas de Lorca [A melhor poesia do mundo, 2001] pela Editora Caras e por Ediouro, que custava R$ 1,00. Até no pátio central do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás há uma placa com o verso do Romancero gitano “Verde que te quero verde” mediante o qual se tenta chamar a atenção para que os acadêmicos respeitem uma zona ajardinada.
Verde que te quero verde
Verde que te quero verde é também o título do ensaio de interpretação do Romancero gitano realizado há mais de vinte anos por Jose Carlos Lisboa (Lisboa, 1983). Se esse verso for introduzido em um “buscador” da web, provavelmente encontrar-se-ão mais de cinco mil entradas com páginas brasileiras que o usam por todo tipo de motivos, desde os estritamente ligados à produção literária aos relacionados com o direito ambiental, passando por estabelecimentos comerciais ligados ao turismo, por jardins botânicos, por documentos sobre artes plásticas e por floriculturas.
Contrastando com a difusão que a obra lorquiana começou a receber após o assassinato do autor, os documentos de que dispomos levam a inferir que a obra de Lorca foi pouco conhecida no Brasil em vida do poeta. Lorca, entretanto, esteve em território brasileiro em duas ocasiões. Ian Gibson (1989), biógrafo de Lorca, menciona três escalas do literato andaluz no Brasil durante a sua travessia transatlântica pelo Cone Sul. As duas primeiras aconteceram em outubro de 1933; o navio Conte Grande, que o levaria a Montevidéu, aportou aos 9 desse mês no Rio de Janeiro e, dois dias depois, em Santos, onde, tomando água de coco e comendo abacates, perdeu o navio. No Rio, Lorca fora recebido por Alfonso Reyes, escritor norte-americano que foi o embaixador do México no Brasil de 1930 a 1935. Segundo Gibson (ibidem, p. 407), Reyes entregou ao poeta os primeiros exemplares da “Oda a Walt Whitman” e acompanhou-o em uma turnê pela cidade.
A derradeira fugaz estadia de Lorca no Brasil teve lugar em 30 de março de 1934, durante a parada do Conte Biancamano, navio que zarpara de Buenos Aires e no qual Lorca regressava a Barcelona. No Rio, o poeta esteve de novo com Alfonso Reyes; Gibson (ibidem, p. 428) menciona que o mexicano presenteou Lorca com uma caixa envidraçada de borboletas tropicais, a qual ficaria “orgulhosamente exposta no apartamento da família em Madri”.
A inadvertência no passo de Lorca pelo Rio de Janeiro e por Santos redunda na premissa de que o interesse no poeta andaluz por parte da intelectualidade brasileira só se fez patente após a deflagração da guerra na Espanha e a chegada da notícia da morte do escritor. É provável que, a finais da década de 1920, se pudesse encomendar algum exemplar de suas obras em verso Libro de poemas, Poema del Cante Jondo, Primeras canciones, Canciones ou Romancero gitano na “Librería Española”, do Rio de Janeiro, sita primeiro na rua da Alfândega e depois na 13 de maio, a única livraria especializada no livro importado em língua espanhola durante essa década no Brasil.
Xenofobia
Mas é preciso ponderar que, em 1930, após ter sido consolidada a revolução dita liberal, se iniciou um período coercitivo em relação às identidades estrangeiras que, da formalização das posturas xenófobas no corpo das emendas nacionalistas da Carta Magna de 1934, culminou na campanha de nacionalização promulgada pelo Estado Novo. Assim, de acordo com o exposto por Maria Luiza Tucci Carneiro (2002, p. 104) em sua pesquisa sobre a censura de livros e a perseguição de “idéias malditas”, a legislação nacionalista de 1938 estabeleceu que livros, jornais e bíblias mantidos nas residências, associações comerciais, escolas e clubes deveriam ser impressos no Brasil.
Conseqüentemente, a partir de 1938, dificultou-se sobremaneira a importação de livros editados no exterior. A isso se deve somar o extremo zelo com que, desde 1936, os corpos de segurança brasileiros fiscalizaram a chegada de qualquer publicação procedente da Espanha. A preocupação existente no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e nos Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social (DEOPS) por evitar a propagação do credo vermelho associado à República Espanhola não prejudicou o curso normal que seguiram as relações diplomáticas entre as repúblicas do Brasil e da Espanha até março de 1938, quando o Brasil reconheceu o governo do general Franco, mas emperrou a divulgação da literatura espanhola.
O distanciamento cultural com a língua espanhola e a cultura hispânica fez com que no Brasil não surgisse uma crítica que pudesse acompanhar os lançamentos e apresentações de um poeta e dramaturgo que, antes do sucesso de público e crítica de Mariana Pineda (junho de 1927) e da publicação do Romancero gitano em 1928, só se assomara timidamente aos processos de inserção na canonização literária do sistema espanhol. Todavia, em 1944, Luis Amador Sánchez, professor da recém criada cátedra de Língua e Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo, publicou um estudo biográfico de Lorca intitulado “Biografia e Interpretação” (Trias, 2004) em que informa que a primeira vez que se mencionou Lorca no Brasil foi em 1930. Segundo esse professor, o literato andaluz Francisco Villaespesa, em viagem pelo Rio de Janeiro a convite do presidente Washington Luís, referira-se a ele e aos também poetas andaluzes Manuel e Antonio Machado como exponenciais mostras de melhor poesia contemporânea espanhola. Porém, desconhece-se em que circunstância Villaespesa fez esse comentário e qual foi a sua platéia. De todas as formas, deve-se ponderar que na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro não está registrado nenhum dos títulos de Lorca com edição anterior ao ano 1940[1] e que as primeiras traduções ao português do Brasil de produtos do seu corpus foram posteriores à sua morte.
Tempos do pós-modernismo
Portanto, ao longo da década de 1930, a única forma de aceder à leitura de um livro de Lorca seria adquirindo um exemplar importado em edição espanhola ou argentina, uma importação que suporia esquivar bastantes entraves devido à convulsionada circunstância das relações internacionais da época. As obras de teatro de Lorca, assim como seus livros de poemas só começaram a ser traduzidos e editados no Brasil quando já estavam sancionados como produtos canonizados do polissistema literário de Hispano-américa.
Sua tardia chegada ao mercado brasileiro não exerceu a função de ocupar vácuos literários nem de apresentar modelos que renovassem os paradigmas poéticos dominantes de um sistema que, sobretudo a partir da “Semana de 1922”, almejava receber o reconhecimento de ter atingido a auto-suficiência para promover a própria superação nas idéias e das formas, independentemente da influência das traduções.
Contudo, Lorca forneceu um novo modelo formal para a resolução do uso dramático do verso, estreitamente ligado à dimensão estrutural da obra teatral, nos enfrentamentos dialéticos das formas universais antagônicas encarnadas no princípio de autoridade em conflito com o princípio de liberdade. Nesse sentido, já em 1938, Augusto Frederico Schmidt, no artigo “Mauriac, Lorca e a eternidade do teatro” (Schmidt, 1938), pusera em relevo o drama das consciências atribuladas no teatro de Lorca. A maior valorização literária que inicialmente teve o teatro lorquiano frente à poesia detecta-se ao contrapor as primeiras traduções ao português do Brasil que ganhou a obra do andaluz.
Bodas de sangue
Em 1944, a “Companhia Dulcina-Odilon” de Dulcina de Morais e Odilon Azevedo levava ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e estreava no Brasil, Bodas de sangre [Bodas de sangue], em tradução de Cecília Meireles. Bodas de sangue permaneceu como peça da temporada oficial do principal teatro carioca até 1947, junto a César e Cleópatra de Bernard Shaw.
Aos 7 de dezembro de 1948, a companhia “Teatro de Amadores de Pernambuco” levou à cena, no Teatro de Santa Isabel da capital pernambucana, A casa de Bernarda Alba, sob direção de Valdemar de Oliveira, obedecendo à tradução de Maria Rosa Ribeiro. Depois da estréia, o “Teatro de Amadores de Pernambuco” apresentou A casa de Bernarda Alba em tournée pelas maiores capitais do país. Também no Teatro de Santa Isabel, essa mesma companhia encenou, em 1956, Bodas de sangue, na tradução de Cecília Meireles[2]. Sobre Bodas de sangue, a primeira grande análise crítica, desenvolvida por José Carlos Lisboa, foi publicada no Rio de Janeiro (Lisboa, 1961).
Perante a grande canonização - a canonização de massas - que recebeu o teatro de Lorca, a sua poesia só foi de vagar sendo inserida no sistema brasileiro. Assim, apesar de que, já em 1937, Mauro de Alencar resenhasse em um artigo a produção de Lorca e a circunstância do autor e de que, em 1943, Otto Maria Carpeaux dedicasse um ensaio à relação entre o neogongorismo e a poesia de García Lorca (Carpeaux, 1943), e embora três anos depois Edgard Cavalheiro tivesse escrito um estudo sobre o autor e a sua obra (Cavalheiro, 1946), houve que aguardar até 1957 para ver publicada a primeira tradução de um dos livros de versos do poeta andaluz. Essa primeira tradução completa de uma obra lírica de Lorca - o Romanceiro gitano - foi realizada pelo goiano Afonso Félix de Sousa (García Lorca, 1957), sendo lançada no Rio pela Civilização Brasileira, isto é, treze anos depois de que o público carioca pudesse assistir à estréia de Bodas de sangre.
No entanto, em fevereiro de 1944, bem antes do lançamento da tradução de Félix de Sousa, poemas esparsos de Lorca foram publicados pela carioca Revista Leitura e, uns meses depois, pela paulistana Revista Letras, mas essas composições foram apresentadas na sua língua original. Os poemas reproduzidos por essas duas revistas procediam dos livros Primeras canciones (1922), Romancero gitano (1928), Poeta en Nueva York (1929-30), Seis poemas galegos (1935) e Diván del Tamarit (1936)[3]. Com a tradução do Romancero gitano feita por Félix de Sousa inaugurou-se uma característica bastante particular relativa às traduções da poesia de Lorca no Brasil, extensível também ao teatro. Ela consiste no fato de um mesmo produto lorquiano receber, ao longo de meio século, três traduções diferentes ao português brasileiro.
Dezessete anos depois da tradução de Félix de Sousa, o Romancero gitano será traduzido por Oscar Mendes (1974) e, em 1989, a editora Martins Fontes, em parceria com a editora da UnB, lançará a tradução de William Agel de Melo, incluída na tradução da obra poética completa de Lorca.
Entretanto, foram também publicadas seleções de poemas de Lorca procedentes de diversos livros de poesia em que se observam novas traduções. Assim, em 1988, apareceu a obra Poemas e canções, com seleção, tradução e introdução de Luiz Roberto Benati (García Lorca, 1988). Dez anos depois se lançou Poemas de amor: remansos de amor: antologia, com tradução de Floriano Martins (García Lorca, 1998) e, em 2003, José Paulo Paes (García Lorca, 2003) publicou sua seleção traduzida de versos de Lorca, intitulada Os encontros de um caracol aventureiro e outros poemas.
Se antes da morte de Lorca é escasso o conhecimento havido no Brasil da sua obra, por sua vez, na produção dele não são percebidos elementos que denotem transferências ou intertextualidade em relação ao campo literário brasileiro.
Por outro lado, na correspondência que se conserva de Lorca também não aparecem alusões ao Brasil. Suspeitamos que, além do quadro com as borboletas espetadas que ganhara de Alfonso Reyes, da menção do topônimo “Brasil” por um dos personagens de Así que pasen cinco años e de uma humorística alusão a Santos Dumont na peça teatral Doña Rosita la soltera o el lenguaje de las flores[4], o único vínculo proposital estabelecido pelo poeta andaluz com o Brasil se derivou de seu empenho em se pôr ao serviço de causas solidárias vinculadas à ideologia marxista. Nesse sentido, o historiador irlandês (Gibson, ibidem, p. 478) assinala que os meses de março e abril de 1936 foram especialmente significativos na demonstração, por parte de Lorca, de sua vontade de aparecer engajado e comprometido com posições políticas “progressistas”. É preciso assinalar que aos 18 de julho de 1936 desmanchara a rebelião militar que desembocou na Guerra Civil espanhola (18.07.1936-01.04.1939).
Nesses meses prévios ao enfrentamento fratricida entre espanhóis, Lorca lera alguns de seus poemas em um grande comício esquerdista do Clube Operário de Madri, incluindo o instigador “Romance de la Guardia Civil Española” que integrava o Romancero gitano. Além disso, filiara-se, por um lado, à então recém-criada Associação de Amigos da América do Sul, dedicada a combater a ditadura de Miguel Gómez, em Cuba, e o governo constitucional do Dr. Getúlio Vargas e, por outro, à dos Amigos de Portugal, fundada com a finalidade de informar o público espanhol sobre o Estado Novo estruturado pelo Prof. António de Oliveira Salazar.
Foto com Luiz Carlos Prestes
Entre o material documental inédito incorporado por Ian Gibson na sua aproximação ao retrato de Lorca, consta uma fotografia em que se pode reconhecer o poeta andaluz recitando durante um ato de solidariedade com o militar, por então stalinista, Luiz Carlos Prestes, organizado pelo Socorro Rojo Internacional e celebrado na Casa del Pueblo de Madri, em 28 de março de 1936. Essa foto tornou-se parte de uma fotomontagem publicada em Mundo Obrero, aos 30 de março daquele ano; rodeando o palanque do qual Lorca declama e gesticula com aparente exaltação, há uma faixa em que está escrito “Salvad a Carlos Prestes”.
A análise das representações de Lorca no Brasil vem sendo assumida desde há uma década por alguns críticos literários brasileiros e espanhóis envolvidos no estudo do processo de recepção neste país da circunstância do literato. Esses pesquisadores esboçaram, por um lado, o mapeamento da publicação da produção lorquiana traduzida ao português do Brasil.
Por outro, estudaram a transferência da obra plástica surrealista de Lorca à pintura brasileira, as características das representações de sua obra teatral no território nacional e, em geral, as vias de incorporação do autor e de elementos de seu corpus literário ao repertório da cultura brasileira. Junto à reconstrução desenvolvida em vários trabalhos acerca dos passos seguidos pelas significações de Lorca até a sua inserção no repertório brasileiro, há um considerável conjunto de ensaios que ora divulgam aspectos relativos à obra do poeta andaluz, ora a comentam mediante glosas, ora a criticam academicamente.
Dentre os trabalhos realizados no Brasil sobre a repercussão e as representações da produção lorquiana, os de Teles (1998), Hernandes (2002) e Willer (1998 e 2002) são os mais abrangentes. Da parte espanhola, Luisa Trias Folch (2004) acrescentou algumas valiosas informações sobre as transferências de Lorca no Brasil na década de 1940, as quais completaram os levantamentos dos outros autores, cujos estudos são anteriores no tempo. O artigo de Gilberto Mendonça Teles foi apresentado no encerramento dos atos que, ao longo de 1998, se celebraram na cidade de Salamanca para comemorar o centenário do nascimento de Lorca; ele levanta um âmbito de investigação que aprofundaram as análises que o seguiram. Antes de apresentar um estudo sobre o deslocamento da produção de Lorca à lírica brasileira, esse artigo, embasado em digressões sobre as teorias comparatistas e sobre os rescaldos positivistas que ainda as oprimem no Brasil, parte da consideração de que as noções de contexto e intertextualidade relativas aos produtos, às suas ideologias e às suas tendências transformadoras exigem deter-se tanto na observação da complexidade de relações tecidas entre os objetos literários quanto nos horizontes de expectações construídos ao seu redor. Umas relações que para Teles não são unilaterais, isto é, não se trata de hegemônicas influências de fontes européias vertidas verticalmente em um atrofiado e submetido imaginário brasileiro, senão de discursos paralelos e intercruzados entre a Europa e o Brasil que patenteiam a dimensão paradigmática e dinâmica dos textos que se desejam comparar no espaço da Poética.
Poetas brasileiros prestigiam o espanhol
No sistema literário brasileiro são apontados por Teles (1998) os componentes de uma plêiada de jovens poetas colaboradores com o regime de Getúlio Vargas - Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Murilo Mendes - que começaram a divulgar seus versos na década de 1930 e que se converteriam em admiradores da obra de Lorca. Segundo Teles, esses escritores, no entanto, só começaram a escrever sobre Lorca ou a incorporar referências “solidárias” a Lorca em seus versos após a intervenção militar que derrubou o Estado Novo[5]. O autor de A poesia em Goiás acredita que a década transcorrida entre o fuzilamento de Lorca e a difusão das primeiras composições sobre o poeta andaluz lavradas por autores brasileiros deveu-se a temores perante a possibilidade de causar desagrado à censura que exercia o DIP mediante um férreo controle dos periódicos e da produção artística, dada a relativa tolerância mantida entre 1939 e 1945 pelo regime corporativo de Vargas a respeito da ditadura nacional-sindicalista do caudilho Francisco Franco. Apesar dos receios dos intelectuais brasileiros a quebrantar o silêncio imposto pelo DIP que aponta Teles para explicar a escassez de reações em relação à Guerra Civil espanhola (1936-1939), criaram-se brechas que permitiram materializar as manifestações de adesão à causa da II República espanhola. O historiador José Carlos Sebe Meihy (1993, p.47) destacou que, em 1941, Monteiro Lobato traduziu do cárcere o romance de Hemingway Por quem os sinos dobram. Por sua vez, Thaís Battibugli (2004, p. 185) assinalou que, em 1939, Érico Veríssimo publicou o romance Saga (Veríssimo, 1940), cujo argumento recolhe as difíceis e dramáticas situações enfrentadas pelos revolucionários brasileiros que se alistaram voluntariamente nas Brigadas Internacionais que foram lutar na Espanha em favor da causa republicana. Uma mais tardia referência ao conflito espanhol aparece em Agonia na Noite (Amado, 1986), segundo volume da trilogia Subterrâneos da Liberdade, cuja publicação iniciou-se em 1956. Entre outros assuntos, em Agonia da noite narra-se a greve deflagrada pelos estivadores do porto de Santos que se recusaram a carregar café destinado às zonas de Espanha controladas pelo exército de Franco (idem, ibidem, p. 17-104) e a participação de voluntários brasileiros que viajaram à Espanha para defender a II República militando nas Brigadas Internacionais (idem, ibidem, p. 159-71). A vacilação para escrever sobre Lorca não pode, portanto, ser explicada por um temor a provocar à censura, como acredita Teles (1998):
Os escritores mencionados, agora com os seus quarenta anos e já conhecidos como grandes poetas, só começam, entretanto, a escrever sobre García Lorca depois da queda do Estado Novo. Parece que tiveram algum receio de desagradar a censura da época. Lorca havia sido fuzilado pelo governo espanhol, e não se sabia bem por quê, possivelmente por atuação comunista, como se pensava e não se dizia. A repressão ao comunismo veio dos Estados Unidos e cresceu no Brasil, só terminando recentemente, por verdadeira inanição mental.
A essa opinião de Teles podem-se aderir várias ressalvas. Por um lado, é preciso dissociar a lenta inserção da obra de Lorca no Brasil de qualquer proibição ditada pelo Estado Novo. Nem o DIP nem os DEOPS barraram, durante os regimes de Vargas, as encenações das peças teatrais de Lorca ou impediram a publicação de artigos de opinião, resenhas, ensaios ou homenagens ao poeta e dramaturgo andaluz. De fato, as obras dele nunca foram apreendidas ou confiscadas. Além disso, Lorca não foi fuzilado pelo “governo espanhol” senão por uma hoste formada por para-militares fascistas e militares golpistas cujo regime só foi reconhecido por Vargas em 28.03.39 (Vargas, 1995, p. 204-05). O que sim poderia ter sofrido contumaz perseguição seria o uso, ou a reivindicação de Lorca, para fins de oposição aos princípios do Estado Novo. Por outro, deve-se considerar que a defesa da legitimidade da República espanhola esteve estreitamente relacionada, após a sua derrota pelo exército de Franco e de seus aliados nazi-fascistas, com os posicionamentos políticos do comunismo internacional. Nesse sentido, cabe mencionar o uso do nome “Federico García Lorca” por organizações políticas e culturais vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) legalizado entre 1945 e 1947.
Em 2004, no Arquivo Público Mineiro, tive acesso às pastas do DEOPS de Minas Gerais que continham a documentação apreendida, aos 12 de maio de 1947, sobre as atividades realizadas pelo Comitê Municipal de Belo Horizonte da Associação Brasileira dos Amigos do Povo Espanhol (ABAPE), entidade de caráter “democrático popular” que fora criada em 29 de junho de 1945, no salão da Associação Brasileira de Imprensa, do Rio de Janeiro, para apoiar e defender “os ideais de fraternidade universal em geral e da democracia espanhola, em particular” (Estatutos, 1945). No n. 3 do Boletim da ABAPE - “Número especial dedicado ao 10º aniversário da Resistência Espanhola” (03.07.1946) - há três artigos em que se cita Lorca.
O periódico abre-se com um texto de E. Mira López (1946, p. 1-3) intitulado “18 de julho, data culminante da história da Espanha”. Nele associa-se a Espanha “liberal” a Lorca, ao fundador do Partido Socialista Operário Espanhol e a Pasionaria, a mais famosa líder comunista espanhola durante a Guerra Civil (idem, ibidem, p. 2). Mais adiante, no artigo intitulado “Nossa dívida com a Espanha”, Moacir Werneck de Castro (1946, p. 5) insere uns versos tirados da Cena Quinta de La zapatera prodigiosa para enfatizar a necessidade de que o Brasil se solidarizasse com a Espanha, e Alberto Palacios (1946, p. 7) encerra seu artigo “Salvemos os presos políticos da Espanha” com uns versos apócrifos de Lorca dos quais se chegou a dizer que foram declamados pelo poeta antes de ser fuzilado.
Além da documentação apreendida relativa à ABAPE, na pasta do DEOPS também constavam alguns textos relacionados com o “Ateneu García Lorca”, uma associação civil de caráter cultural fundada em 16 de julho de 1946 que tinha por objetivos fundamentais “divulgar a arte, a literatura e ciências da Espanha, promover cursos de língua, literatura e história espanholas” e “desenvolver as relações culturais entre o Brasil e a Espanha e colaborar com as instituições universitárias e culturais em geral, para o fortalecimento dos laços de solidariedade espiritual e democrática entre ambos os povos” (Projeto de Estatutos, 1946). Perceba-se que tanto a ABAPE quanto o “Ateneu García Lorca” foram intervindos em maio de 1947, data da cassação do registro do PCB pelo Supremo Tribunal Federal. Nos meses seguintes aconteceu a repressão das organizações que seguiam as orientações do Partido Comunista, entre as quais parece que figuravam as duas associações mencionadas.
Em relação à vinculação do símbolo “Lorca” com posicionamentos políticos, cabe mencionar que o poema de Manuel Bandeira (1993, p.196-97), “No vosso e em meu coração”, não é estritamente uma elegia a Lorca, senão a acareação entre alguns dos elementos de repertório associados com a II República e as representações do fascismo e da reação monarquista em que ancora a sua identidade o autoritarismo do Estado imposto pelo general Franco[6]. Nele, Bandeira liga a Lorca a aposição “irmão assassinado em Granada”, um “irmão” de quem posteriormente traduziria dois poemas[7]. Teles (1998) opina que a estrutura estrófica de “No vosso e em meu coração” - um romance - é tanto um reflexo do encantamento de Bandeira com o Romancero gitano quanto uma conseqüência da vontade de aproximação rítmica aos metros lorquianos. Porém, frente ao parecer de Teles, pode-se considerar que, dado que Lorca simplesmente é uma das quinze referências que compõem o leque da exaltação republicana de Bandeira, os setissílabos e as rimas assonânticas nos versos pares do romance de Bandeira não são mais que uma transposição do romance popular castelhano, vigente, ademais, em toda a Península Ibérica entre a Idade Média e o Barroco e transplantado ao Nordeste brasileiro no início de período colonial[8]. O paroxismo relativo a escrever sobre Lorca e conectar essa escritura com posturas ideológicas de esquerda observa-se ainda no comentário publicado em 1981 por Paulo de Tarso Jardim (Jardim, 1991, p. 193) na Revista de Poesia e Crítica em relação à temática da poesia de Félix de Sousa: “O livro seguinte, Memorial do errante (1956), apesar de incluir um Pranto por Federico García Lorca, bem como os Tercetos de Leningrado, não pode ser considerado sob o ponto de vista do engajamento. Há nele bons poemas, como alguns dos Sonetos de Olinda, que acabam compensando o caráter fragmentário do livro.”
A influência de Lorca
Assim como Gilberto Mendonça Teles, em 1998, ano do centenário do nascimento de García Lorca, o poeta, ensaísta e tradutor Cláudio Willer, publicou artigos e deu palestras sobre o poeta andaluz. Em Como ler García Lorca? (Willer, 1998), inicia sua exposição mencionando os autores brasileiros que, ou escreveram poemas sobre Lorca, ou citaram-no e parafrasearam-no com liberdade. Por um lado, assinala que se deve salientar, além de Drummond e Vinícius de Moraes, já destacados por Teles (1998), Paulo Mendes Campos, autor da “Ode a Federico García Lorca” (1958, p. 11-15), na qual se apresenta um diálogo impossível com o interlocutor desaparecido. Por outro, agrupa três autoras vinculadas à geração de 45 - Hilda Hilst, Lupe Cotrim Garaude e Renata Pallottini - com um adepto da associação de cartaz, poesia e espetáculo através do “poema-objeto”, Lindolf Bell, e com o transgressor e delirante Roberto Piva, todos eles produtores de poemas de intertextualidade lorquiana.
Embora não desenvolva uma análise, Willer (1998) acredita que se poderia desenvolver um estudo sobre a influência de Lorca no Brasil a partir de uma cisão na procedência dos elementos de repertório transferidos. Nesse sentido, haveria um grupo de autores em que a intertextualidade de sua obra focalizaria o Lorca do Romancero gitano, frente a outros que tomariam o Lorca de Poeta en Nueva York. Indica, ademais, dois temas que deveriam atrair a atenção da pesquisa. Esses seriam, em primeiro lugar, a difusão oral da poesia de Lorca, na qual destacaria a declamadora e poeta Mariajosé Carvalho e, em segundo lugar, a encenação de suas peças.
Centrando-se na cidade de São Paulo, Willer frisa que a partir de 1968 a reivindicação de Lorca, e as homenagens a ele, transfiguraram-se em mobilização política contra a ditadura de Franco e contra os governos militares formados a partir da “redentora” revolução do 31 de março. Nesse uso de Lorca participaram, junto a intelectuais brasileiros, os imigrantes espanhóis integrantes do “Centro Galego-Centro Democrático Espanhol”. Assim se tratando, a primeira atuação de relevo foram os atos promovidos no Teatro Municipal e na Biblioteca Mário de Andrade em favor da inauguração, na Praça das Guianas, do monumento a Lorca realizado por Flávio de Carvalho. Um ano após a instalação do monumento, na madrugada do 26 de julho de 1969, algumas explosões reduziram a escultura de Flávio de Carvalho a pedaços de ferro espalhados pelo jardim da Praça. Nunca se apuraram os verdadeiros autores do atentado, mas foi atribuído a organizações de extrema direita, possivelmente o CCC [Comando de caça aos comunistas]. No Arquivo Histórico da Sociedade Hispano-Brasileira de Socorros Mútuos conservam-se tanto o programa do Teatro Municipal de São Paulo referente ao espetáculo “García Lorca Vivo”, quanto uma matéria intitulada “São Paulo inteiro homenageia Lorca”, publicada aos 28 de setembro de 1968 pela Folha de São Paulo[9].
O poeta na internet
Luciana Carneiro Hernandes (2002) estudou a presença de Lorca em sites brasileiros, sobretudo a partir da década de 1990. A autora levantou citações a Lorca em todo tipo de textos. A falta de uma delimitação na pesquisa de campo foi justificada pela autora argüindo que os textos “periféricos”, embora tivessem uma importância secundária para o estudo acadêmico da obra de Lorca, poderiam ser considerados de grande valia para marcar o grau de importância na influência do polígrafo andaluz na composição das representações sobre a Espanha em alguns campos sociais brasileiros, devido à possibilidade de ampla divulgação que facilita a rede.
Hernandes partiu da suposição de que as imagens de sucesso sobre a Espanha criadas no Brasil evocam principalmente estereótipos andaluzes estreitamente ligados a Lorca: o folclore árabe-andaluz, a arquitetura e os jardins mouriscos, as touradas, o flamenco e clichês estéticos ciganos. A pesquisadora não se baseia em nenhuma investigação antes de asseverar taxativamente que as representações mediterrâneas e andaluzas forjadas no Brasil sobre a Espanha são as que receberam uma maior acolhida; manifesta, simplesmente, que acredita que as imagens exóticas inerentes a essas representações se adequam às impressões consuetudinárias consolidadas no imaginário dos brasileiros acerca desse país da Península Ibérica.
Acha, além disso, que a caricaturesca simbologia dos signos “Andaluzia, touradas e flamenco” contém nuanças mais agradáveis que a de “terra árida, fidalgos e vassalos e os moinhos de vento” emanada do Quixote.
Os trabalhos sobre a recepção da obra de Lorca no Brasil, acima destacados, mostram que as transferências de elementos do repertório lorquiano não se restringem ao sistema literário senão que abrangem diversos campos sociais interessados em construir e utilizar representações da Espanha alicerçadas nos reflexos simbólicos recebidos da produção do autor andaluz. Essa multifacetada recepção projetou-se também nas traduções que obteve a produção do poeta, especialmente enfrentadas entre si no modo de trasladar ao português as figuras de pensamento e de linguagem, enfrentamento ao que não são alheias as duas traduções “goianas” da poesia lorquiana.
Os onze Sonetos do Amor Obscuro, escritos entre 1935 e 1936, foram publicados por primeira vez aos 17 de março de 1984, em uma separata do suplemento cultural do diário ABC, de Madri. No momento de sua publicação, não houve entre a crítica literária espanhola nenhuma dúvida em relação ao fato desses sonetos amorosos reafirmarem a genialidade do autor. Porém levantaram-se acirradas polêmicas sobre se eles confirmavam a homossexualidade do poeta. As discordâncias começaram já pelo título que deveria receber a série de poemas. Segundo Gibson (ibidem, p. 438), não existe documento conhecido em que Lorca aluda aos seus sonetos sob o título geral dos Sonetos del amor oscuro: a fonte principal no que se refere a essa denominação é Vicente Aleixandre, que a ouviu do próprio Lorca e em 1937 recordou uma leitura privada dos poemas alguns meses antes da morte do autor. Quando ele acabou de ler, Aleixandre exclamou: “Que coração! Como deve ter amado! Como deve ter sofrido!”.
O crítico e editor de Lorca, Miguel García-Posada (1984, p. 33), acreditou ao resenhar esses poemas que o simples rótulo Sonetos transmitia de forma mais precisa os perfis do projeto poético que Lorca estava desenvolvendo quando foi assassinado, deixando inconcluso seu propósito de compor poesia seguindo uma poética mais classicista, frente à concepção surrealista seguida em Poeta en Nueva York:
¿Y el mítico título de Sonetos del amor oscuro? Diversos amigos de Lorca, desde Aleixandre a Cernuda, lo han mencionado, y sin duda se lo oyeron al poeta. Basta leer el soneto que comienza: ‘Ay voz secreta del amor oscuro...’ ¿Por qué no lo adoptó el autor de modo definitivo? Aquí se entrecruzan dos problemas [...]. El primero afecta al alcance del sonetario proyectado. Por diversos testimonios coincidentes es lícito inferir que el libro en preparación no iba a constar solo de poemas amorosos. Luis Rosales ha transmitido el título de Jardín de (o de los) sonetos y precisado que el conjunto final iba a constar de dos secciones: una, en la que entrarían los sonetos de amor de 1935-36, [...]; y otra, en la que se agruparía el resto de los sonetos escritos desde 1924.
A partir dessa divergência, que também se refletirá nas traduções de Félix de Sousa e Agel de Melo, surge uma outra discrepância. Para Gibson apresenta-se como inegável que o adjetivo “oscuro” [escuro] aplicado por Lorca ao amor tem um sentido manifestamente homossexual. O biógrafo de Lorca baseia-se na análise das vivências do poeta, durante suas estadias na cidade de Valencia, em 1933 e 1935, para relacionar três dos sonetos com dois amigos do poeta. Assim, “Soneto de la carta” e “El poeta dice la verdad” refletiriam as preocupações, a saudade e o descontentamento de Lorca a respeito do seu relacionamento com Rafael Rodríguez Rapún e o “Soneto gongorino en que el poema manda a su amor una paloma” estaria relacionado com a amizade de Lorca com o poeta valenciano Juan Gil-Albert, homossexual assumido que o presenteara com uma pomba engaiolada. Ao contrário do parecer de Gibson, García-Posada (ibidem, p. 33-34), no prólogo da primeira edição completa dos Sonetos, opinou veementemente que o “amor escuro” do poeta andaluz era, simplesmente, um amor secreto, ausente, um amor que mata ou faz morrer.
Esse crítico achava, em 1984, que os sonetos de Lorca estavam longe da literatura pederasta e que neles brotava uma conceição cósmica do amor, fruto de um “pan-sexualismo” vinculado à moral do amor, distante da corrupção e da vileza que sujam e prostituem o sentimento amoroso. Vinte anos depois de escrever sua apologia do “pan-sexualismo” lorquiano refletido nos Sonetos, no prólogo à edição da Poesia Completa III, García-Posada (2004, p. 20) abandonou sua alucinada peneira moralista e praticamente contradisse o que anteriormente expusera com irritado tom taxativo. Assim, em 2003 escreveu que foi a relação com Rafael Rodríguez Rapún o que inspirou a série inconclusa dos “sonetos do amor escuro” e que eles são um inequívoco canto de paixão e de temor à perda do amor. Além disso, inseriu o rótulo Sonetos del amor oscuro como subtítulo de Sonetos.
Parece que o litígio que acompanhara o debate acerca da “escabrosidade” escondida nos sonetos amorosos de Lorca refletiu-se tangencialmente nas traduções realizadas pelos dois intelectuais goianos que os verteram ao português do Brasil. A disparidade das traduções nada tem a ver com o conteúdo escatológico dos versos, senão que é a conseqüência de concepções diferentes do modo de traduzir, mas essa insimilaridade transmite hermenêuticas que fornecem aos consumidores brasileiros das duas traduções cotejadas a possibilidade de perceber holismos diferentes do sentido da poética de García Lorca. Como já foi mencionado acima, ambos os tradutores não se limitaram a transladar os Sonetos à língua portuguesa; inclusive, pode-se inferir que essas traduções constituem o final do labor empreendido por eles, como tradutores, em relação à poesia de Lorca. Antes de publicar em 1988 a sua tradução dos Sonetos do amor obscuro e do Divã do Tamarit, Félix de Sousa traduzira o Romancero gitano a meados da década de 1950 e também compusera dois poemas dedicados ao escritor andaluz, o “Pranto por Federico García Lorca” e “A García Lorca”[10]. Por sua vez, Agel de Melo só incorporou a tradução de nove dos onze sonetos del amor oscuro na 3ª edição bilíngüe da Obra poética completa de Lorca. Com certeza, o interesse de Agel de Melo pela poesia lorquiana surgiu na década de 1960, quando exerceu a função de cônsul no Consulado Geral do Brasil em Barcelona[11].
A primeira divergência nas traduções dos sonetos “póstumos” de Lorca localiza-se no título adotado para o conjunto de poemas. Félix de Sousa opta por traduzir o título espanhol Sonetos del amor oscuro como “Sonetos do amor obscuro”. Até 2003, ano em que se consolidou o título Sonetos del amor oscuro, nas edições espanholas e hispano-americanas desses sonetos oscilara-se entre os títulos Sonetos, Sonetos amorosos, Sonetos de amor e Sonetos del amor oscuro. Félix de Sousa, baseando-se no testemunho de Vicente Aleixandre, na escolha já feita por uma edição argentina acerca do título desses sonetos y no verso “¡Ay voz secreta del amor oscuro!” com que se inicia um dos poemas (García Lorca, 2004, p. 206), decide apor “del amor oscuro” a Sonetos. Aliás, ele discerniu que o título “sonetos do amor obscuro” era simplesmente mais belo e sugestivo, e menos pudoroso, que “sonetos do amor” e que o adjetivo enfatizava a condição clandestina em que era vivido esse amor. Ora, o que não ficou esclarecido é por que ao traduzir oscuro ao português, Félix de Sousa coloca “obscuro”, e não “escuro”, sobretudo se é levado em consideração, por um lado, que, assim como em português existem os adjetivos “obscuro” e “escuro”, em espanhol existem os adjetivos obscuro e oscuro, suas equivalências sinônimas, e por outro, que, caso Lorca, segundo asseverou Vicente Aleixandre, tivesse qualificado amor com um adjetivo, esse adjetivo espanhol foi oscuro e não obscuro. Ao incorporar por primeira vez nove dos Sonetos à sua tradução da Antologia poética completa, Agel de Melo intitulou a série de Sonetos inéditos, evitando assim os devaneios em torno da polêmica do título. Nessa série, Agel de Melo reuniu catorze sonetos; além de nove dos onze que García-Posada denomina Sonetos del amor oscuro na última antologia poética de Lorca editada na Espanha à que tivemos acesso (idem, ibidem), constam dois dos sonetos incorporados por García Posada no rótulo Otros sonetos[12], um soneto - “La mujer lejana” - inserido por García Posada no grupo Poemas sueltos (García Lorca, 1989, p. 446) e outros dois sonetos (“Yo la he visto pasar por mis jardines” e “El viento explora cautelosamente”, compostos por Lorca em 1918 e 1923, respectivamente. Os dois “sonetos del amor oscuro” (“Soneto de la dulce queja” e “El poeta pide a su amor que le escriba”) que não figuram entre os Sonetos inéditos da tradução de Agel de Melo, estão englobados em uma outra série, a dos Poemas esparsos (“Tenho medo a perder a maravilha” e “O poeta pede a seu amor que lhe escreva”, respectivamente). Infelizmente, esses dois “sonetos del amor oscuro” são os únicos que constam na 5ª edição da Obra poética completa traduzida por Melo (García Lorca, 2004b), pois nela foi eliminada a seção Sonetos inéditos que fora acrescentada à 3ª edição. No entanto, na 1ª edição da antologia poética de Lorca publicada pela Martins Fontes (García Lorca, 2001), contendo, segundo nota do editor, aqueles poemas considerados por Melo como os mais significativos da obra de Lorca e também os mais populares entre os brasileiros, constam cinco “sonetos do amor escuro”: “O poeta pede a seu amor que lhe escreva”, “Soneto da grinalda de rosas”, “O poeta diz a verdade”, “[Ai, voz secreta do amor escuro!]” e “O amor dorme no peito do poeta”.
A segunda divergência entre Félix de Sousa e Agel de Melo reside em compreensões parcialmente opostas do trabalho de tradução. A relativa dissensão entre os tradutores não parte de diferentes graus de possessão das competências que, segundo Roda P. Roberts e Jean Delisle (Roberts, 1984 apud Delisle, 1996, p. 72-73), deve haver assimilado o tradutor profissional, embora nem Sousa nem Melo tenham publicado traduções de textos não literários+[13]. Parte, sim, do filtro utilizado por esses tradutores perante a recepção do sentido dos sonetos e manifesta-se nos conseqüentes textos equivalentes por eles produzidos em português após uma série de tomadas de decisão. Na “Introdução” aos Sonetos do amor obscuro, Sousa (2002, p. 12) expôs sua latente estrutura de expectativas em relação à orientação que ele seguiu para combinar o expressado em espanhol nos sonetos com formas correspondentes brasileiras:
Ao traduzir estes sonetos, procurei fundir o mais possível os recursos proporcionados pelas duas línguas irmãs. A fim de que ao menos se mantivessem próximos da unidade harmônica original, tive que proceder a inversões, alterar ou sacrificar (muitas vezes com sacrifício também meu) uma e outra palavra e imagem, buscar equivalências que em certos casos apenas roçam o sentido. Tinha que ser assim. A tradução destes sonetos não podia ser uma versão literal e portanto esquelética, mas uma tentativa de alcançar em português o reflexo da beleza dos sonetos em castelhano. Não fosse assim, seria melhor não traduzi-los.
Sousa afirma que, após captar o sentido dos versos lorquianos e de liberá-los da sua embalagem verbal original, reescreveu-os utilizando os recursos da língua portuguesa; porém, às vezes, essa re-expressão desembocou no distanciamento semântico em relação ao sentido primigênio. Portanto, de uma visão funcionalista, Sousa prefere privilegiar a recepção de um determinado sentido do texto na cultura de chegada, ainda que para atingir esse objetivo tenha que subordinar ao “fim” o conjunto do processo da translação. Por sua vez, na “Apresentação do tradutor” da Obra poética completa, Agel de Melo (1996, p. XXIX-XXX) salienta que, embora fugisse da tradução literal, procurou não modificar as imagens criadas na língua original:
O fato é que a tradução implica uma escolha, dentro de um processo seletivo que melhor sirva aos desígnios de transmitir a realidade de uma língua para outra. É uma escala de valores, cujo ponto mais baixo é a tradução literal, a que mais se aproxima do texto original. A partir de aí, a tradução admite uma série de gradações, inclusive a recriação, na qual o tradutor altera substancialmente a linguagem, mas conserva a integridade de sentido. [...] Traduzir é acima de tudo um ato de humildade. É respeitar a vontade do autor como um testamento, transmitindo o seu pensamento da maneira mais exata possível. [...] Traduzir é traduzir. É não ultrapassar os limites da obra em questão. O tradutor tem a obrigação de refletir a imagem o mais nitidamente possível. Não embelezar o texto, a ponto de o trecho traduzido suplantar o original. Não procurar corrigir os erros de qualquer natureza [...]. E nisso consiste uma das tarefas mais difíceis da tradução.
O resultado dessas interpretações com nuanças enfrentadas sobre os percursos da tradução é a criação de textos diferentes, devido sobretudo aos procedimentos seguidos para estabelecer equivalências textuais interlingüísticas, isto é, para criar a identidade de sentido dos sonetos de Lorca em espanhol e em português, mantendo as mesmas, ou quase as mesmas, denotações e conotações. Isso se comprova em qualquer um dos sonetos lorquianos traduzidos por Sousa e Melo.
Assim se tratando, se são cotejadas as suas traduções daquele que, desde a primeira edição de 1984, se apresenta como o primeiro dos sonetos del amor oscuro - o “Soneto de la guirnalda de rosas” (García Lorca, 2004, p. 201) - observa-se que em cinco versos a dissonância das traduções tem um cunho estilístico e que só quatro dos versos coincidem em forma e sentido na língua de chegada dos produtos gerados por ambos os tradutores. Trata-se dos versos espesura de anémonas levanta (7º), quiebra juncos y arroyos delicados (11º), boca rota de amor y alma mordida (13º) e el tiempo nos encuentre destrozados (14º), traduzidos respectivamente, tanto por Sousa (García Lorca, 2002, p. 23) quanto por Melo (García Lorca, 1996, p. 689), como “espessura de anêmonas levanta”, “quebra juncos e arroios delicados”, “boca rota de amor e alma mordida” e “o tempo nos encontre destroçados”. Contudo, a discordância na tradução de cinco versos é estrema. ¡Esa guirnalda! ¡pronto! ¡que me muero (1º), ¡Teje deprisa! ¡canta! ¡gime! ¡canta! (2º), y otra vez viene y mil la luz de Enero (4º), bebe en muslo de miel sangre vertida (11º) e Pero ¡pronto! Que unidos, enlazados (12º) são traduzidos, respectivamente, por Sousa como “Eu morro! Que a grinalda bem ligeiro”, “teças! E pronto! canta! geme! canta!”, “e vêm de novo as luzes de janeiro”, “Sangue em coxa de mel bebe em seguida”, “E pronto! Agora unidos, enlaçados”. Melo, porém, traduz esses versos como se segue: “Essa grinalda! Pronto! Estou morrendo!”, “Tece depressa! Canta! Geme! Canta!”, “e outra vez e mil a luz de janeiro”, “Bebe em coxa de mel sangue vertido”, “Porém, pronto! Que unidos, enlaçados”.
Ambos os mediadores rejeitaram a tradução literal, ou “palavra por palavra” na etiqueta criada por García-Yebra (1982, p. 407), apesar da escassa distância estrutural entre os textos escritos em espanhol e em português, para, assim, evitar cair na cilada de forjar combinações lingüísticas, aparentemente pertinentes, mas que afastam a linguagem do texto traduzido dos meandros estilísticos do texto original. Aplicando-se a perspectiva do “enfoque variacional”, observa-se que Sousa, na sua concepção da tradução, parece acreditar que a versão final dos sonetos em espanhol de Lorca não é mais que uma das possibilidades de uma escala de variação que admitiria um feixe de paráfrases susceptíveis de expressar o mesmo significado. Assim, quando ele traduz escolhe a opção que considera mais acertada dentro de uma escala de variação análoga na língua portuguesa guiando-se por uma “equação cultural” que incluiria seu conceito de mediador em relação à tradução, o papel desempenhado pelas traduções nas relações interculturais e as convenções que estipularam os agentes que encomendaram a tradução. Por sua vez, Melo também assume a dupla condição de mediador dos sonetos de Lorca e de redator deles na língua portuguesa, mas no exercício de sua função de interlingüista tenta repetir a presumível intencionalidade do autor manifestada no texto final em língua espanhola, prescindindo das possíveis paráfrases que o texto poderia ter na língua de partida e abstendo-se de construir novas representações da poética de Lorca por meio do exercício da tradução.
Notas do autor:
[1] Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro as obras de Lorca que primeiro foram adquiridas são Doña Rosita la soltera o El lenguaje de las flores; Mariana Pineda, Así que pasen cinco años (ambas publicadas em Buenos Aires: Ed. Losada, 1940), Poeta en Nueva York, Conferencias, Prosas póstumas; Romancero gitano, Poema del cante jondo; Yerma, La zapatera prodigiosa e Libro de poemas, Primeras canciones, Canciones, Seis poemas galegos, 3. ed. (as quatro publicadas em Buenos Aires: Ed. Losada, 1942).
[2] Além de Bodas de sangue, Cecília Meireles traduziu uma outra tragédia lorquiana, Yerma. Ambas as obras teatrais foram publicadas pela Editora Agir, do Rio de Janeiro, em 1960 e 1963, respectivamente. Anos depois, as tragédias de García Lorca receberam novas edições e traduções. A tradução feita por Cecília Meireles de Yerma e de A casa de Bernarda Alba foi publicada em 1975 pela Companhia José Aguilar, acrescentando-se a tradução de Dona Rosita a solteira ou A linguagem das flores, em um trabalho conjunto com Carlos Drummond de Andrade e Alphonsus de Guimaraens. Por outro lado, a tradução de Bodas de sangue que fizera Cecília Meireles também foi publicada pela J. Aguilar em 1975, compartilhando volume com a tradução de Assim que passem cinco anos, realizada por Oscar Mendes. Também pela J. Aguilar, e nesse mesmo ano, foram publicadas Amor de Dom Perlimplim, A sapateira prodigiosa, O retábulo de Dom Cristóvão, Diálogos e O público, em tradução de Oscar Mendes. Completando a publicação, em 1975, do teatro de Lorca, a J. Aguilar lançou em um mesmo volume O sortilégio da mariposa, Mariana Pineda e Os títeres de Cachiporra, cuja tradução fora feita por Oscar Mendes junto a Stella Leonardos. Em 2000, Marcus Mota publicou em Brasília e em São Paulo a sua tradução de A casa de Bernarda Alba e de Assim que passarem cinco anos: lenda do tempo. Em 2004, foi publicada a tradução de Bodas de sangue, realizada por Rubia Prates Goldoni.
[3] A análise das homenagens prestadas a Lorca no n. 15 da Revista Leitura e no volume monográfico sobre Lorca da Revista Letras foi desenvolvida por Luisa Trias Folch (2004).
[4] A alusão a Santos Dumont é a seguinte: “- Está entendido, la Tierra es un planeta mediocre, pero hay que ayudar a la civilización. Si Santos Dumont, en vez de estudiar Meteorología comparada, se hubiera dedicado a cuidar rosas, el aeróstato dirigible estaría en el seno de Brahma” (García Lorca, 2005, p. 102-03). Em 1958, foi encenada e publicada a tradução de Carlos Drummond de Andrade de Doña Rosita la soltera. Por esse labor, Drummond de Andrade recebeu o Prêmio Padre Ventura, do Círculo Independente de Críticos Teatrais.
[5] Os poemas aos que se refere Teles são “A Federico García Lorca”, de Carlos Drummond de Andrade; “No vosso e em meu coração”, de Manuel Bandeira; “A Morte na Madrugada”, de Vinícius de Moraes e “Canto a García Lorca”, de Murilo Mendes.
[6] Bandeira associa, à democracia republicana, além de Lorca, Pablo Neruda, Dom Pelayo, o Cid, o Gran Capitán, Dom Rodrigo, os “santos poetas” e “grandes místicos” - São Juan de la Cruz, Santa Teresa de Ávila e Frei Luis de Leon -, Lope, Góngora, Goya, Cervantes, Picasso e Casals. Para o poeta, esses indivíduos são ícones entranháveis da liberdade, da honra, da verdade, da livre crença, de resistência e das querências revolucionárias. Frente a eles estaria a Espanha de Franco, a Espanha da opressão e da traição e a Espanha inquisitorial, representada por Dom Julián, Felipe II e Fernando o Católico.
[7] Trata-se dos poemas “Toada de negros em Cuba” e “Balada da pracinha” (Bandeira, 1976, p. 57-60), pertencentes a Poeta en Nueva York e ao Libro de poemas, respectivamente.
[8] O modelo estrófico do romance também foi cultivado por Lope de Vega, Luis de Góngora, e Miguel de Cervantes, escritores incorporados por Manuel Bandeira à sua representação da Espanha republicana. Em relação à perduração de elementos feudais no repertório da cultura “popular” nordestina e, dentro disso, na estrutura das modinhas, tiranas, desafios, cantigas de ninar, cantigas de ronda, aboios, pregões e romances ou xácaras, v. Weckmann (1993, p. 222-35).
[9] Segundo consta no Histórico do monumento ao poeta espanhol Federico García Lorca (s.d.) elaborado pelo “Centro Cultural F. García Lorca”, a construção do monumento a García Lorca partiu do “Centro Democrático Espanhol”, em 1967, e recebeu a acolhida de intelectuais paulistas. A “Comissão de Homenagem a García Lorca” foi presidida pelo Prof. Paulo Duarte e secretariada pela escritora Renata Pallotini. A Comissão organizou a “Semana de Homenagem a García Lorca”, entre 22 de setembro e 1 de outubro de 1968. Para as homenagens foram convidados os irmãos do poeta, Isabel e Francisco - ambos professores da Universidade de Columbia - e os poetas Pablo Neruda, Rafael Alberti e Gabriel Celaya. Aos 26 de setembro houve uma palestra a cargo de Antonio Candido na Biblioteca Municipal “Mário de Andrade”, intitulada “A obra de Federico García Lorca”. No dia 30, no Teatro Municipal, sob a direção geral de Alberto D’aversa e com roteiro e tradução de Renata Pallotini, apresentou-se um espetáculo dividido em três partes: música, dança e teatro; houve um recital intitulado “A vida pela poesia de García Lorca” e encenaram-se adaptações das peças A sapateira prodigiosa, Bodas de sangue, Yerma e A casa de Bernarda Alba. Em 1998, foi reinstalado o Monumento pelo “Centro Cultural García Lorca”, com a ajuda do Governo Espanhol e a colaboração da Secretaria Municipal de Cultura e do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo e, entre o 18 e o 22 de maio de 1998, foram organizadas, pelo IEB/ USP, atividades de comemoração do centenário do Nascimento de Federico García Lorca sob o rótulo “30 anos do monumento a García Lorca… Uma história parada no ar! 1898-1968-1998”.
[10] “Pranto por Federico García Lorca” (Sousa, 1991, p.170-71), incluído no Memorial do errante, reflete na sua estilística e na sua estrutura uma grande preocupação estética, manifestada, sobretudo no emprego intensivo da metáfora. Tematicamente, associa representações amargas de Andaluzia (“oliveiras e formas que ao sol de Espanha roubam um tórrido destino”, “paisagens de aspereza e sono”, “canção de desterro […] levada nas asas de uma guitarra”) ao assassinato de Lorca. Segundo Teles (1983, p. 147): “Memorial do errante possui, nalguns de seus versos, uma forte influência de García Lorca, a que o poeta dedica um belo poema, na página 83. Foi, aliás, por essa época (1957) que traduziu o Romancero gitano, de Federico García Lorca, conseguindo com certa felicidade transpor para o português a grande linguagem lorquiana.” Em relação ao poema “A García Lorca”, composto por Sousa, o crítico goiano expõe (idem, ibidem, p. 150): “A característica de sua obra é sempre a espontaneidade. Soube ser moderno, melhor diremos eclético, sem se tornar hermético, sem se desligar repentinamente do passado romântico-parnasiano. […] Palmo a palmo veio construindo o seu roteiro lírico, vindo dos mais rígidos alexandrinos aos mais singelos e belos versos modernistas, de que temos um bom exemplo em “A García Lorca”, ainda inédito”.
[11] O interesse de Agel de Melo pela Espanha reflete-se na correspondência mantida com João Guimarães Rosa em 1966 e 1967. O conjunto das cartas trocadas com Guimarães Rosa revela seu alto grau de inserção nos campos sociais da Catalunha. Curiosamente toda essa correspondência tem a ver com o andamento da tradução e edição de obras de Guimarães Rosa para o castelhano.
[12] Trata-se de “Soneto de homenaje a Manuel de Falla ofreciéndole unas flores” e do soneto “En la tumba sin nombre de Herrera y Reissig en el cementerio de Montevideo” (García Lorca, 2004, p. 233).
[13] A propósito da tradução profissional, Roda P. Roberts e Jean Delisle (Roberts, 1984 apud Delisle, 1996, p. 72-73), assinalam as seguintes competências: “linguistique (capacité de comprendre la langue de départ et qualité d’expression de la langue d’arrivée)[;] traductionnelle (capacité de saisir l’articulation du sens dans un texte, de le rendre sans le déformer dans la langue d’arrivée tout en éviant les interférence)[;] méthodologique (capacité de se documenter sur un sujet donné et d’assimiler la terminologie propre au domaine)[;] disciplinaire (capacité de traduire des textes dans quelques disciplines de base, telles que l’économie, l’informatique, le droit)[;] technique (capacité d’utiliser diverses aides à la traduction, telles que traitement de texte, banques de terminologie, machines à dicter, etc.)”.
*Antón Corbacho Quintela nasceu na Galiza, Espanha, em 1973. É licenciado em filologia hispânica (área de galego-português) pela Universidade de Santiago de Compostela (1996) e mestre em filologia galega pela mesma universidade (2001), onde fez o doutorado sobre representações identitárias dos imigrantes galegos no Brasil. É membro do Conselho Diretor do Grupo GALABRA [Galiza, Portugal, África, Brasil], que se dedica aos estudos sobre o polissistema literário da lusofonia. Contato: corbachoq@rocketmail.com. Página ilustrada com obras do artista Oscar Dominguez (Espanha).
Fonte: Jornal de Poesia
deu no site http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=173042&id_secao=11
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