UM PAÍS QUE NÃO EXISTE MAIS

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Adelaida de Juan: Meio século de artes plásticas em Cuba

A fundação de duas instituições culturais a poucos meses do triunfo revolucionário, em janeiro de 1959, repercutiria de modo notável no futuro das artes plásticas cubanas, que já contavam com movimentos e figuras relevantes. O Instituto de Arte e Indústria Cinematográficas (Icaic), criado em março, e a Casa das Américas, em abril, tiveram grande importância ao propiciar novos panoramas nos quais floresciam manifestações já estabelecidas e surgiam novas produções, em design gráfico, por exemplo.

Texto extraído do site http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=165445&id_secao=11


Dessa forma, houve uma abertura tanto interior como de comunicação com o exterior, canalizada, especialmente, pelas iniciativas das instituições mencionadas. Além disso, o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) ganhou um novo impulso, e foram fundadas galerias de exposição não só na capital, mas em outras cidades do país.

Em 1961, foi criada a União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac) cuja seção de artes plásticas esteve inicialmente a cargo do pintor Mariano (1912-1990). Em 1963, convocou-se para o Congresso da União Internacional de Arquitetos (UIA) em Havana. Para sua celebração, foi construído, no bairro de El Vedado, o Pavilhão Cuba, que chegaria a ser sede de importantes exposições, e foram refeitas as calçadas da principal avenida, conhecida como La Rampa. Nessas calçadas, foram colocadas lousas desenhadas pelos mais importantes artistas cubanos ativos da época, como Wifredo Lam (1902-1982), Amelia Peláez (1896-1968), Mariano, René Portocarrero (1912-1985), Luis Martínez Pedro (1910-1989) e Sandú Darié (1908-1991).

No ano seguinte, a Casa das Américas, cujo departamento de artes plásticas era dirigido por Mariano, convoca o Concurso Latino-americano de Gravura, que seria celebrado anualmente até 1971, quando se converteu em Encontros de Artes Plásticas Latino-americanos; esses encontros ocorreram quatro vezes ao longo da década de 1970. Essas são as principais reuniões internacionais propiciadas regularmente no terreno da plástica na Casa das Américas, a qual, paralelamente, realiza com regularidade exposições individuais e coletivas de artistas da América Latina e Caribe em sua Galeria Latino-Americana. Muitos desses concursos e exposições são acompanhados por eventos teóricos sobre o passado e o futuro das artes em nossa América.

Primeira Mostra da Cultura Cubana

A Casa das Américas também desempenhou um papel importante em outra direção: propiciou, em 1965, a primeira exposição interdisciplinar de certa envergadura que se celebraria no país. A Primeira Mostra da Cultura Cubana abrigou no Pavilhão Cuba arquitetos, pintores, designers, escultores e teóricos para atingir uma obra unitária na qual cada voz tivesse seu próprio registro enquanto formava parte de um concerto coral. Essa iniciativa chegaria a seu ápice em 1968, quando foi celebrado, em janeiro, o Congresso Cultural de Havana. Nessa ocasião, uma equipe interdisciplinar, que contava com roteiristas, cineastas e músicos, além dos diversos artistas plásticos, realizou, no Pavilhão Cuba, a Exposição do Terceiro Mundo.

Para a celebração da emblemática data de 26 de julho, outra equipe interdisciplinar, formada por designers, escultores, músicos e técnicos em iluminação, utilizou o caminho do Pavilhão até a Praça da Revolução em Havana para colocar desenhos e textos alusivos aos "Cem anos de luta". Ao desembocar na Praça, macrodesenhos serviam de fundo para a música e efeitos luminosos. Também na cidade de Santa Clara, na região central da Ilha, houve outro trabalho interdisciplinar na Praça, assim como no monumento ao trem blindado que capturou Che Guevara durante a luta contra a ditadura.

Um evento até certo ponto interdisciplinar teve lugar em La Rampa em julho de 1967. Com a decisiva iniciativa de Wifredo Lam, foi transladado para Havana o parisiense Salão de Maio. Não só foram as obras (pinturas, gravuras e esculturas), mas também muitos dos artistas e críticos franceses. Organizou-se em Havana um grande mural coletivo, com um desenho em forma de espiral seccionada em espaços quadrados, no qual trabalharam juntos artistas plásticos e escritores franceses e cubanos.

O segmento central da espiral correspondeu, como é lógico, a Wifredo Lam, que desenhou suas características formas romboides que lembram os íremes1 das crenças afro-cubanas. Durante toda uma noite, montados em andaimes, trabalharam os criadores no mural colocado ao ar livre em La Rampa. Dançarinas do famoso cabaré Tropicana, músicos populares e o povo em geral contemplaram e estimularam o desenvolvimento da obra coletiva. Quase ao amanhecer, o mural já terminado foi levado para o Pavilhão Cuba, onde foi colocado junto com as obras do Salão de Maio.

Os artistas mencionados continuaram seu trabalho pessoal. Mariano, por exemplo, desenvolveu uma técnica temática ao longo de uma década, até meados da década de 1970, que intitulou Frutas y realidad. Nela o autor combina as duas referências do título (frutas e realidade) privilegiando a dimensão das frutas tropicais para contrastá-la com a "realidade" proveniente de diversas fontes, enquanto a cor vibrante unifica a composição. Logo após essa série, o autor produziu mais duas: Masas e Fiesta del amor. Martínez Pedro, no mesmo perío-do, voltou-se para seu exercício abstrato em várias séries inspiradas nas Aguas territoriales e em Otros signos del mar. Com diversas gamas de azul, que chegam até o malva, o pintor abordou uma temática relativamente pobre na pintura cubana.

Martínez Pedro deu uma nova guinada na sua temática em meados da década de 1970 para exercitar seu excelente métier de desenhista ao realizar umas imagens gigantes e solitárias de diversas flores cubanas, trabalhando com um notável nível de detalhe uma flor em cada tela. O seu coetâneo, René Portocarrero, que obteve o Prêmio Sambra na Bienal de São Paulo em 1964, elaborou novas versões de um tema trabalhado por ele na década anterior, Ciudad, para levá-lo, a partir de 1962, de um sóbrio esquema quase abstrato a um esplêndido panorama de fôlego barroco no qual podemos reconhecer, entre as ruas apertadas, edifício e monumentos, a silhueta da escultura colonial emblemática da capital.

Foram vários os temas que trabalhou Portocarrero até sua morte, sempre desbordante de elementos florais e aves, levados à tela com uma rica gama cromática. Dessa forma, criou, particularmente, as obras Cabeza ornamentada, Flora e Carnaval.

Servando Cabrera Moreno (1923-1981) inaugurou, no começo da década de 1960, a temática dos camponeses e milicianos, frequentemente trabalhada por ele em desenhos livres. Passou, logo, a compor em óleos de grandes dimensões fatos históricos recentes, como "La batalla de Santa Clara". Poucos anos depois, mudou para a série de composições eróticas, às vezes monocromáticas, como em Torsos; continuou com essa tendência até sua última exposição: Habanera tú. Por sua vez, Raúl Martínez (1927-1995), um artista multifacetado de uma geração mais nova, apresentou uma guinada importante na sua obra. Martínez, que durante a década de 1950 havia formado parte do grupo "Los Once" de artistas abstratos, entre os quais destacamos Antonio Vidal (1928-), desenvolveu, em meados da década de 1960, uma espécie de Pop Art cubana.

Potenciando seus talentos de pintor, designer e fotógrafo, produziu obras emblemáticas nas quais aparecem figuras destacadas da história cubana, como no caso de José Martí. Percorrendo um caminho similar, embora independente, ao do norte-americano Rauschenberg, as imagens de Raúl Martínez se repetem ritmicamente, combinando ícones conhecidos com figuras populares que ele mesmo fotografava nas ruas da cidade. Em 1969, ele reuniu uma primeira exposição do seu trabalho pictórico, com o significativo título de Nosotros, que depois se transformaria em La gran família.

Em contraste com essas produções, a obra de Antonia Eiriz (1929-1995) representa o que denominei, após sua primeira exposição pessoal em 1964, "o tremendo na pintura cubana". Eiriz pintou cenas e figuras nas quais o traço negro é levemente aliviado por algumas zonas pastel (a artista confessou que admirava os celestes que tinha visto em Giotto). O seu quadro emblemático, La anunciación, de 1964, parte da cena bíblica para levá-la até a realidade quotidiana por meio de uma deformação expressionista que lhe confere um indubitável poder reflexivo.

Toda a obra de Eiriz está marcada por essa força, que em certas ocasiões a levou a queimar a tela e a produzir o que poderíamos considerar uma tentativa de instalação, por meio de peças que ela denominavaEnsamblajes. Eiriz também realizou várias "Homenagens" dedicadas a figuras relevantes da cultura cubana, como José Lezama Lima, Amelia Peláez e, em duas ocasiões, Santiago Armada, conhecido artisticamente como Chago (1937-1995), desenhista que foi um original caricaturista. Ele criou um personagem chamado Salomón, que era porta-voz de preocupações filosóficas e críticas sociais.

A obra de Chago contrasta vivamente com a de um caricaturista muito popular na década de 1950, René de la Nuez (1937-), que criou um personagem, El Loquito, que combatia a tirania. A partir de 1959, El Loquito deu passo aos Barbudos e outros personagens criados por René de la Nuez. Em 1966, começou a publicar suas caricaturas Manuel Hernández (1943-), que no final da década de 1980 será o mais agudo comentarista da vida quotidiana cubana. Foi a figura estelar da publicação DDT, que agrupou vários humoristas desses anos.

Uma técnica como a da cerâmica, que tinha tido relativamente poucos antecedentes em Cuba, encontrou exemplos notáveis em alguns murais realizados por Amelia Peláez e René Portocarrero. Porém, o artista que se dedicou a experimentar e realizar uma ampla obra dentro da chamada cerâmica escultórica foi Alfredo Sosabravo (1930-). Seu trabalho criador é constante, em Cuba e em outros países, desde meados da década de 1960 até a atualidade.

Já na escultura, abre-se para alguns artistas a possibilidade de realizar obras de grande formato. Agustín Cárdenas (1921-2001) realizou peças em diversas cidades da Europa e da Ásia. Para o MNBA ele executou, em 1967, La ventana, peça na qual se revela sua fidelidade a alguns princípios que o levaram a tomar parte originalmente do grupo "Los Once". De outro lado, Rita Longa (1912-2000) trabalhou em diversas obras ambientais, em La aldea taína (1961-1964) se vê notavelmente o papel dos habitantes da cidade e suas atividades, obra localizada no lugar turístico de Guamá. Posteriormente, com uma linguagem derivada de princípios da abstração, a autora realizou Bosque de los héroes (1973), localizada na oriental cidade de Santiago de Cuba.

Fotorreportagem e Che Guevara


Em Havana, Sandú Darié realizou várias peças produto de seu exercício na arte óptica e cinética, como em El árbol rojo de 1981, obra tributária dos Penetrables do venezuelano Soto, e os relevos de grande tamanho no Hospital Ameijeiras. De sua parte, Tomás Oliva (1930-1996) realizou a figura emblemática da popular sorveteria Coppelia, no início de La Rampa, em 1968. De forma completamente diferente, Oliva compõe a homenagem às vitimas da sabotagem ao buque La Coubre em 1969. Para essa peça, Oliva utilizou ferros retorcidos da nave destruída para conseguir uma obra de forte expressionismo dentro de sua forma abstrata.

Precisamente no velório das vítimas dessa sabotagem, o fotorrepórter Alberto Korda (1928-2001) fez a emblemática foto de Ernesto Che Guevara. O fotógrafo, que já contava com uma rica experiência de estudo, captou a imagem do rosto do Che em uma visão inefável pela sua força expressiva. Essa foto, popularizada alguns anos depois na Europa, construiu um ícone, reiterado em múltiplos suportes por várias gerações de admiradores daquela gesta heroica do argentino-cubano. A fotorreportagem atingiu seu apogeu durante a década de 1960, na qual eventos de grande importância ficaram fixados na história. Entre as figuras mais ativas da época destacamos Raúl Corrales (1925-2006), que sobressai pelas suas originais imagens do que se conhece como etapa épica da fotografia cubana.

Design gráfico
Não restam dúvidas, no entanto, de que o evento plástico mais original dessa década foi o surgimento do design gráfico como manifestação orgânica a partir do começo da década de 1960. As instituições culturais desempenharam um papel de importância em tal empresa, notadamente o Icaic. Descartando a prática de utilizar as imagens publicitárias que se importavam junto com o filme, o Icaic postulou a criação de cartazes que ignorassem o costume de potenciar o chamado star-system para procurar uma imagem que seguisse a essência concei-tual do filme. Esses conceitos se mantiveram como orientadores, junto com os requerimentos naturais das diversas vertentes do design gráfico, sendo a produção de temática política a de maior lentidão na sua prática. Nessa época, produziram-se manifestações de grande impacto visual e conceitual, estabelecendo-se internacionalmente como uma notável escola cubana de design.

Para o Icaic trabalharam, com regularidade e estilos pessoais, artistas como Eduardo Muñoz Bachs (1937-2001), que utilizou com frequência desenhos humorísticos, sem descartar a provocação conceitual. Podemos achar um exemplo disso nos desenhos para o filme Los tres mosqueteros que, por meio de uma figura com três pares de botas, provoca uma leitura rememorativa da obra original; ou sua peça para o documentário Missing children,tragédia sintetizada por uma bolinha abandonada numa esquina de um escuro cartaz.

Muito diferente é a obra de René Azcuy (1939-), que emprega detalhes ampliados de fotografias em preto-e-branco, com algum significativo toque de cor (Besos robados). Para o evento internacional da Canção Protesto, convocado pela Casa das Américas em 1967, Alfredo Rostgaard (1943-2004) realizou o cartaz que já é emblemático da plástica da Revolução cubana. Rostgaard evitou a alusão primária do violão utilizada pela maioria dos músicos dessa modalidade, e se valeu de uma metáfora conceitual, com cores planas brilhantes: uma rosa com a espinha ensanguentada.

Casa das Américas
Durante mais de 20 anos, a partir de meados da década de 1960, o designer das publicações da Casa das Américas foi Umberto Peña (1937-). A revista Casa de las Américas e os livros publicados pela Casa tiveram um aspecto sempre original e diverso graças à incessante imaginação criadora de Peña. Os cartazes de temática social e política também atingiram um nível estético considerável a partir de 1965. Félix Beltrán (1938-), por exemplo, realizou um desenho exemplar pelo seu impacto comunicativo e seu poder de síntese durante a campanha para economizar petróleo (1968-1969). A palavra onomatopaica Clik aparece solitária e clara sobre uma grande expansão de cor plana e escura, recurso que resultou altamente eficaz.

O Salão de 1970, no MNBA, destacou-se por ser o cenário no qual se mostraram inicialmente os primeiros alunos formados da Escola Nacional de Arte propiciada pela Direção de Cultura. Também em 1970, Manuel Mendive (1944-), um pintor que adquiriu renome fora da Ilha, obteve um prêmio internacional. Assim como tinha feito Lam, Mendive se baseia no imaginário das crenças afro-cubanas, no seu caso, da "santeria" ou "Regla de Ocha". Longe de abjurar sua família crente e praticante dos ritos ancestrais, Mendive os leva primeiro a composições em madeira e depois a telas de diversos formatos.

Dessa forma, o artista apresenta em suas obras da década de 1970 uma dicotomia entre vida-morte, alegria-tristeza (amiúde personificados em Elegguá), enquanto alude a fatos históricos que vão da época da escravidão colonial à liberação revolucionária. De "Barco negrero" e "El palenque" a "Martí, el Che y Oyá" (dona do cemitério no panteão yoruba), Mendive traça um vasto mural da realidade vivida pelo povo cubano, imbricada com deidades ou orixás da "santeria".

Bienal de Havana

Na segunda Bienal de Havana, em 1986, Mendive foi premiado pelo que talvez fosse a primeira performance em grande escala realizada na Ilha. Nela, Mendive trabalhou arduamente com a chamada body art ao pintar sobre os corpos dos figurantes, como também nos dos animais simbólicos (tartaruga e pomba). Depois disso, iniciou-se na música e na dança, que continuou até percorrer várias ruas vizinhas, enquanto pessoas que passavam se juntavam e se integravam à música e à dança. Mendive insistiu nessa linha de produção até a década de 1990, durante a qual se dedicou à escultura mole e depois a telas nas quais aparecem figuras esotéricas e de maior intimidade, num âmbito de cores pastel.

A partir da década de 1970, como mencionamos, surgem vários grupos de jovens artistas que revigoraram a produção plástica da Ilha. Destacam-se criadores que desenvolveram diversas linhas expressivas durante várias décadas. Nelson Domínguez (1948-) e Flora Fong (1949-) vêm trabalhando, a partir da pintura, outras técnicas e incursionaram, recentemente, em variedades escultóricas e instalações. Eduardo Roca (Chocho) (1948-) recontextualizou temas provenientes de religiões afro-cubanas, preferindo em anos recentes a técnica da colografia. Pedro Pablo Oliva (1949-), por sua vez, remete-se a frases e ditados populares para construir cenas nas quais sobressai o uso que ele faz do desenho, assim como a gama cromática que utiliza.

Hiperrealismo

Em meados dessa década e durante alguns anos, popularizou-se uma vertente do chamado hiper-realismo ou fotorrealismo, no qual figuras como Tomás Sánchez (1948-) e Flavio Garciandía (1954-) se destacaram. Garciandía, antes de passar para uma pintura mais irônica, com elementos kitsch, e depois de maior abstração conceitual, realizou vários retratos memoráveis, significativamente intitulados com nomes de músicas de The Beatles: Todo lo que usted necesita es amor (All you need is love, no original) com a imagem de sua companheira de estudos na ENA, a imaginativa desenhista e pintora Zaida del Río (1955-) e, muito particularmente, Nada personal (Nothing personal), excelente retrato de sua professora Antonia Eiriz, no qual maneja com considerável impacto visual uma zona plana de amarelo que cobre parte da tela junto à figura sentada de Eiriz.


Outra variante dessa tendência, à qual agrega um marcado de fôlego midiá-tico e conceitual, é a desenvolvida por Tomás Sánchez. Em 1980, um desenho seu recebeu o Prêmio Internacional Joan Miró; a partir desse momento, Sánchez, além de seus Basureros (Lixeiros), Crucifixiones e outras obras de marcado expressionismo formal, dedicar-se-á às paisagens, nas quais costuma colocar uma figura humana de pequenas dimensões. Esse recurso, que lhe outorga elementos significativos à peça, apresenta a silhueta de costas para o espectador, que, dessa maneira, identifica-se com o ato da contemplação, a meditação, e submerge na paisagem natural. Palmar acechando al soñador del charco (1980) é uma das peças iniciais mais notáveis do pintor, que dialoga com as obras do século XIX da Escola de Paisagismo do Rio Hudson, promulgando uma atitude mística diante da paisagem.

Ministério da Cultura


A fundação do Ministério da Cultura em 1976 propiciou a criação do Instituto Superior de Arte (ISA) como etapa de aperfeiçoamento posterior à ENA existente desde 1959, e ofereceu um panorama ainda mais experimental e conceitual aos artistas. Em 1981, foi celebrada em Havana uma exposição que marcou um antes e um depois no devir artístico da Ilha. Nomeada "Volumen 1" pelos expositores, eles assumiram a curadoria e a montagem da exposição. Com estilos pessoais, os jovens expositores (entre os quais se encontravam Garciandía e Sánchez) abriram para o panorama da arte cubana uma nova brecha expressiva, porém atenta às tendências internacionais do momento, como as variantes do pós-modernismo e o conceitualismo. Começaram, além disso, a privilegiar as instalações e as performances, prática que se manteve até nossos dias, com uma frequente inter-relação entre pintura, escultura e fotografia.


Em 1981, Ana Mendieta (1948-1985) trabalhou em Cuba, nas covas de Bocas de Jaruco, perto de Havana; suas concepções artísticas foram influentes para os jovens criadores. Mendieta representou, em certa medida, o contato direto com produções do mainstream, principalmente a body art, a land art, a performance e a fotografia, em um afã de voltar às raízes. Em 1984, começaram as Bienais de Havana, originalmente com uma marcada insistência na produção artística do chamado Terceiro Mundo. Nelas tiveram um papel central muitos dos artistas mencionados, aos quais devemos agregar outros, como Eligio Fernández (Tonel) (1958-), que privilegiou o desenho derivado das caricaturas e as instalações; Moisés Finalé (1957-), que em 2009 realizou uma exposição em Havana na qual expressou, por meio de pinturas e objetos simbólicos, o propósito de testemunhar o balanço do que ele denomina "Os 80"; Consuelo Castañeda (1958-) recontextualizou algumas citações de figuras consagradas da arte ocidental em obras de forte impacto; Lázaro Saavedra (1964-) introduziu o humor por meio da perspectiva do "chiste callejero" ("piada de rua"); José Bedia (1959-) enfatizou em sua obra seu interesse antropológico que o levou a conviver com comunidades autóctones, especialmente uma comunidade dos Estados Unidos. Bedia fabricou instrumentos que imitam os antigos originais, enquanto realizou, baseado no desenho de grandes dimensões, obras que se converteram em instalações.


Roberto Fabelo (1950-) seguiu uma linha pessoal, foi premiado na primeira Bienal de 1984. Excelente desenhista, Fabelo incursionou em diversas manifestações, chegando a rasgar o papel sobre o qual desenhava para depois compor sobre a parede da exposição os Fragmentos. Com uma marcada força expressionista, Fabelo abordou, a partir da década de 1980, diversas temáticas nas quais revelou sua criatividade por meio de uma linha de intencionada precisão. Sua mais recente mostra no MNBA, em 2009, levou o título de Mundos, que revela sua mudança a partir dos Fragmentos. Fabelo trabalhou com objetos enormes, cujo marcado realismo destaca a imaginação dramática de um desenho de dimensões consideráveis intitulado: "Soñando como Goya". A força expressionista de Fabelo é portadora de suas meditações existenciais, que o levaram, em 2010, a instalar na fachada do Museu, onde se exibia uma exposição coletiva, várias baratas gigantes que formavam parte de sua obra anterior Mundo e que "sobreviveram".

Alguns artistas formados no ISA desenvolveram obras notáveis desde finais da década de 1980 até a atualidade. Uma figura relevante como criador e como docente é René Francisco Rodríguez (1960-). Desde 1988 até 1996, René Francisco trabalhou com seu discípulo Eduardo Ponjuán (1956-), interessados ambos em traçar novos rumos expressivos a partir dos postulados no Volumen 1. Entre 1990 e 1997, René Francisco realizou com seus alunos o que ele denominou "Desde uma pragmática pedagógica", dirigida a trabalhos em diversas comunidades. Em sua obra pessoal, o artista expressa a realidade de um modo próprio por meio de pinturas, ensambles, gravuras e fitas de vídeo. Los carpinteros é um grupo originado no começo da década de 1990 no ISA, sob o comando de René Francisco, formado por Dagoberto Rodríguez (1969-), Marco Castillo (1971-) e, até 2003, Alexander Arrechea (1970-). A marca distintiva de René Francisco se acha no uso de objetos perfeitamente elaborados, os quais projetam ideias improváveis (como a instalação "Drama turquesa", mostrada em Madri em 2010). Uma temática reiterada é a explorada por Abel Barroso (1971-) que, com uma eficaz combinação de xilografias, acrílicos e esculturas, oferece diversas incitações conceituais, frequentemente sob o título de Muros reales, muros virtuales(em mostras na França e Cuba, 2010). No campo do desenho humorístico, destaca-se, desde 1984, a obra de Arístides Hernández (Ares) (1963-), que criou figuras de forte expressionismo cuja graça reclama o deciframento do espectador.

Migração
Após a migração de artistas que se deu por diversos motivos - políticos, sobretudo econômicos -, deram-se a conhecer durante a década de 1990 alguns artistas que haviam estudado na, então, União Soviética. Eles têm em comum o cuidadoso exercício técnico na execução da obra, embora variem consideravelmente a temática. Eles expõem em Cuba, onde, apesar da crise econômica, as instituições culturais mantêm abertas suas portas para eventos tanto nacionais como internacionais, adaptando-se à situação por que passa o país. Destacam-se, sobretudo, as produções de Arturo Montoto (1953-), Cosme Proenza (1955-) e Rocío García (1955-). Montoto explora um realismo marcado pela cuidada apresentação de uma solitária fruta sobre fragmentos arquitetônicos, enquanto a luz incide na cena de modo provocador. Cosme Proenza já foi considerado um "pós-medieval cubano" pela sua temática alusiva e sua cuidada execução. De sua parte, Rocío García explora a temática homoerótica por meio de suas Geishas e de seus Marineros.

Recentemente, em 2008, expôs no MNBA uma sequência intituladaThriller, que podia ser lida sucessiva e/ou fragmentariamente. No terreno da escultura, sobretudo a ambiental, destaca-se notavelmente a obra de Alexis Leyva (Kcho) (1970-), que foi premiado em um concurso internacional em 1995. Ele trabalha com obras de grande formato e vale-se da presença de navios alusivos à migração. Suas peças costumam levar como título frases populares, como a obra em metal localizada desde o ano 2000 na Avenida Puerto de la Habana: Nunca pongas dos clavos en la misma línea.

A mulher nas artes

Outro fato significativo da década de 1990 é o surgimento de mulheres na prática de diversas técnicas. Belkis Ayón (1967-1999) utilizou a técnica da colografia como meio de reprodução múltipla que permitiu agregar diversos materiais à gravura, à maneira de colagens; sua original temática se refere aos mitos das crenças afro-cubanas dos abakuás. Sua obra está centrada na saga de Sikán, mulher condenada à morte por ter descoberto o peixe portador do poder. Ayón, em composições quase inteiramente em preto-e-branco, projeta o trágico destino de Sikán em cenas de uma força expressiva notável. De sua parte, Marta Maria Pérez (1959-) especializou-se na autofotografia analógica em preto-e-branco, com alusões a ritos e frases provenientes da "santeria" afro-cubana. Sandra Ramos (1969-) e Tania Brugueras (1968-) privilegiam as instalações e as performances relativas à migração, tema que se repete em obras de vários artistas dessa geração.

Ao longo da década de 1980 até a atualidade, ganhou força a criação de projetos de escultura ambiental. Em 1980, Sergio Martínez (1930-1988), que havia participado dos Encontros de Artes Plásticas Latino-americanas da Casa das Américas e na confecção da exposição interdisciplinar realizada nesse momento, instalou num parque do centro de Havana uma figura equestre do "Quijote de América". Fundido em metal, o Cavaleiro da triste figura aparece sem roupas, enquanto segura uma grande espada na mão.

A escultura, que pelo seu ímpeto expressionista produziu certo desconcerto nos pedestres do bairro, acabou fundindo-se com a visão quotidiana do parque, agora conhecido popularmente como parque "do Quijote". Em 1981, Sandú Darié executou para o Palácio das crianças pioneiras do Parque Lenin, nos arrabaldes de Havana, El árbol rojo, figura cinética de grande formato, aparentada aos Penetrables do venezuelano Soto. No ano seguinte, o artista inaugurou duas obras de dimensões consideráveis na sala de espera do Hospital Soto.

Também em 1981, José Villa (1950-) realizou, numa linguagem que utiliza certa simbologia fixada em imagens que se repetem, um monumento a Che Guevara no Palácio mencionado. Partindo da emblemática imagem fotográfica que Korda fizera do Che duas décadas antes, Villa colocou a estrela da boina que usava Guevara como símbolo de sua figura; atravessando uma série de pranchas de metal com a figura da estrela, o autor colocou a obra num nível apropriado para as crianças. É conveniente indicar que Villa é um escultor de variada produção, passando da abstração à figuração mais exigente (uma de suas obras mais populares é a imagem do John Lennon colocada no parque de El Vedado em 2000).

Escultura monumental

Ao longo dessas décadas, continuou a prática da escultura monumental nas praças públicas de diversas cidades. A figura do Che foi objeto de uma multiplicidade de obras que foram esculpidas com sua imagem: uma das mais conhecidas é a do Mausoléu dedicado a ele e seus companheiros de luta, erigido em Santa Clara por José Delarra (1938-2003) em 1989. Mais recentemente, Alberto Lescay (1950-) realizou um notável conjunto de peças em homenagem a um dos heróis mais significativos de nossas lutas independentistas, Antonio Maceo, conhecido popularmente como "O Titã de bronze". Esse conjunto escultórico foi erigido na cidade de Santiago de Cuba.

O tratamento que Lescay deu à figura do herói representa, como no caso de Villa, a variedade de estilos na qual trabalha o artista. Lescay utilizou uma linguagem simbólica próxima da abstração ao erigir, em outro parque de El Vedado, uma figura em homenagem a Wifredo Lam, que alude sutilmente às imagens utilizadas pelo pintor.

Outros artistas, notadamente René Peña (1957-) e Cirenaica Moreira (1969-), dedicaram-se à fotografia, privilegiando a própria imagem numa ampla gama de situações vivenciais. Cirenaica é atualmente uma das artistas de mais rica temática, com uma variedade notável para acentuar os atributos que qualificam sua imagem fotografada em preto-e-branco. Numa exposição de 2006, ela abriu uma nova etapa com impressões de rico colorido sobre grandes telas.

Em anos mais recentes do presente século, observa-se uma tendência à exploração em novos meios como avideo art, que convive na atualidade com as variadas modalidades técnicas já mencionadas. Também se integra à produção de artistas do século XXI um ressurgimento do desenho plástico. Graduados do Instituto Superior de Desenho Industrial (Isdi), jovens designers começam a incursionar nas áreas do design. Destaca-se o trabalho contínuo de Pepe Menéndez (1966-), que realiza o trabalho de design da Casa das Américas. Já se pode vislumbrar uma nova geração de jovens designers: Nelson Ponce (1975-), Giselle Monzón (1979-), Raúl Valdés (Raupa) (1980-).

Contemporaneidade

Num panorama necessariamente sintético como o presente, a obrigatória e estrita escolha de artistas ocasiona a ausência de não poucos outros artistas e movimentos coletivos. Fica, pois, para um texto de maior extensão, um relato mais amplo que faça jus ao ambiente de constante experimentação que marca o aporte cubano ao mundo contemporâneo das artes plásticas.


Nota
1 Íreme é uma personagem da cultura abakuá que se manifesta, em Cuba, por meio da dança. Provém da região de Calabar, entre a atual República da Nigéria e parte de Camarões. Íreme é popularmente conhecido como "diablito" e já faz parte do imaginário cultural cubano, em festividades como o carnaval ou em representações típicas da Ilha. (N.T.)


*Adelaida de Juan é consultora de História da Arte e professora emérita da Universidade de Havana. É presidenta fundadora do Capítulo cubano da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA). @ - robade@casa.cult.cu. Tradução de Diego Molina. O original em espanhol - "Medio siglo de artes plásticas en Cuba" - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

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