A peça, que estreou há três anos em São Paulo, conta a trajetória de uma jovem em busca do pai que não chegou a conhecer. Nesse processo, ela acaba descobrindo um passado de mentiras e omissões, forjado durante os anos de chumbo. Cada apresentação é seguida de um debate, com a participação do público, do elenco e de convidados ligados resistência à ditadura.
De acordo com Carolina, o projeto surgiu da reflexão sobre o fato de a atual geração não conhecer bem essa parte da história do país e, aparentemente, não demonstrar interesse por ela e pela política. “Eu tenho 33 anos, então foi um questionamento sobre a minha própria geração. Eu não vivi nada disso, não tenho nenhum familiar envolvido. Mas, como artistas, eu e o Alerxandre Piccini (ator e co-autor) começamos a nos questionar”, relata.
A partir de então, eles iniciaram um longo trabalho de pesquisa, em bibliotecas, arquivos e locais como o Memorial da Resistência, em São Paulo. Também foram em busca dos personagens, entrevistaram pessoas que vivenciaram este momento da história e participaram da resistência ao regime autoritário.
“O espetáculo é uma ficção. Mas estamos viajando o país e, toda vez que a gente se apresenta, tem sempre alguém que se reconhece na história, que diz ‘isso aí tem tudo a ver com o que eu vivi’, ‘comigo aconteceu exatamente assim’, ‘minha irmã passou por isso’. Então a gente vai colhendo mais e mais depoimentos ”, explica Carolina.
Durante todo esse tempo, a reação – e a interação – dos espectadores tem sido um capítulo à parte. “Ali é o lugar em que o jovem se encontra com o cara que viveu essa história. As gerações se encontram no debate e isso é impagável, porque a gente vê o adolescente questionando como é que aquele outro cara enxergava o país naquela época e como é que ele enxerga hoje”, diz a atriz.
Para ela, é possível perceber, em muitos momentos, que o jovem dos anos de chumbo tem muito a ver com o da geração atual. “Todo mundo continua insatisfeito com as desigualdades, com o ensino no país, com a miséria, quer dizer, as questões continuam aí, elas não se resolveram”, constata.
E, nesse encontro, são reveladas história de anônimos, gente que não entrou para a história como Carlos Lamarca ou Carlos Marighella, mas que abandonou seus projetos para lutar pela democracia ou teve sua vida afetada pela ditadura.
“São pessoas que não estão nos livros, nos jornais, mas pegam o microfone e falam coisas muito tocantes. Teve um depoimento que não foi nem de uma pessoa que participou da resistência, mas de uma mãe. Ela tinha mais de 80 anos e os filhos ficavam dizendo ‘poxa, vamos mudar desta casa, vamos para um apartamento. Você fica sozinha aqui nesta casa’. E ela dizia ‘não, eu não posso sair desta casa de jeito nenhum, porque se o meu filho voltar, ele vai voltar para esta casa e, se eu sair daqui, ele não vai me encontrar’. Ela tinha um filho desparecido político. E está lá, ainda hoje, naquela casa, com o mesmo número de telefone, esperando o filho voltar. Então são histórias que a gente fica arrepiada só de ouvir”, lembra Carolina emocionada.
Comissão da Verdade
Coincidentemente, as últimas apresentações deste ano ocorrem uma semana após a presidente Dilma Rousseff sancionara lei que cria a Comissão da Verdade, um assunto sempre em pauta nos debates. “Eu imagino que agora essas conversas vão continuar muito em torno do que vai ser o trabalho dessa comissão, como ela vai atuar, o que ela vai poder esclarecer. Porque, afinal, dois anos (período em que a Comissão da Verdade funcionará) é pouco tempo para esclarecer tudo o que foi escondido pela história oficial”, prevê a atriz.
Depois de participar de tantas discussões e de ouvir opiniões distintas sobre a necessidade de desvendar os fatos ocorridos no Brasil sob o regime militar, Carolina Rodrigues é ponderada ao falar sobre a Comissão da Verdade. “Eu tenho grandes críticas ao projeto, assim como muitas pessoas têm críticas, mas eu acho que a gente tem que não desanimar. Assim como o país conseguiu uma anistia que não foi a que a gente queria - que não foi nem ampla, nem geral, nem irrestrita -, agora a gente aprovou uma Comissão da Verdade, que não foi nem da memória, nem da justiça. Então a comissão foi um passo, mais ainda falta muito trabalho a ser feito”, avalia.
A co-autora do espetáculo defende que além de esclarecer os fatos, é preciso ir além. “É preciso não só a verdade, mas que seja feita a justiça e eu sou a favor de que isso tudo construa uma memória. Eu não acho que a gente tenha que esconder esse assunto, colocar debaixo do tapete. Não acho que construiremos um país verdadeiramente democrático se não olharmos para esse passado, com uma análise crítica”.
Uma dos objetivos dos realizadores do espetáculo Filha da Anistia é exatamente desfazer uma ideia de que o que ocorreu na época da ditadura diz respeito apenas aos diretamente envolvidos. Nesse sentido, questionada sobre como tem sido a recepção à peça, Carolina conta que tem se surpreendido com as reações na plateia.
“Temos encontrado jovens extremamente politizados, a ponto de ouvirmos um adolescente de 14 anos, em Porto Alegre, perguntando o que ele poderia fazer para ajudar a aprovar a comissão da verdade o mais rápido possível. Isso é muito legal”, comemora.
Por outro lado, ela também se deparou com o inverso. “Tem gente que ainda não está nem aí para nada disso”, diz, lembrando que uma das tristes heranças da ditadura militar brasileira é justamente o desmonte da educação, que muito tem a ver com essa falta de interesse pelo passado e pela política. “A educação foi extremamente sucateada na época da ditadura. Não interessava mais que as pessoas pensassem. Então o jovem de hoje não é mais politizado por falta de estímulos e de melhores condições de ensino”.
Passados 32 anos da anistia, pessoas permanecem desaparecidas, fatos distorcidos ou encobertos e nenhuma punição recaiu sobre os responsáveis por prisões, torturas e assassinatos da época da ditadura. Para Carolina Rodrigues, essas lacunas e omissões têm impacto em vários aspectos da atualidade brasileira.
“Por trás dos crimes de violação de direitos humanos cometidos naquela época, há uma tentativa de calar uma parcela da população que queria um projeto totalmente diferente para o Brasil. Estava em jogo uma disputa ideológica, de projetos distintos. Tinha a direita, com os militares e a burguesia que bancou a caça aos resistentes. E tinha a esquerda, que foi reprimida com tanta violência e barbárie”, aponta.
Ao classificar-se como uma pessoa de esquerda, a atriz defende que o fato de os crimes daquele período não terem sido apurados deixa a sensação de que o problema em questão naquela época era mais superficial. “Além de apurar os crimes é preciso entender o contexto todo dessa disputa, que é ideológica”, diz.
Teatro engajado
Em um momento em que o teatro engajado é visto com muitas ressalvas pela crítica, que o trata como algo meio fora de moda, Carolina busca explicações para isso exatamente nessa disputa de projetos. De acordo com ela, nas décadas de 60 e 70, praticamente tudo que se fazia no cenário artístico era engajado.
“O artista não se colocava se não fosse politicamente, porque ao tomar posições, contribuía parta uma reflexão sob um ponto de vista. E quando se acirrou essa disputa entre capitalismo x socialismo, direita x esquerda, artistas foram perseguidos, censurados e torturados no mundo inteiro. A arte engajada foi sendo desmoralizada aos poucos. E, para sobreviverem no mundo, conseguirem trabalhar, as pessoas tiveram que não fazer a crítica”, coloca.
Carolina lamenta, então, que a retomada desse tipo de arte venha acontecendo de forma tão devagar. “Porque o capitalismo prevaleceu. A gente vive num mundo capitalista em que as pessoas querem entretenimento. Elas querem consumir e não pensar. E a gente faz espetáculo para refletir, essa é a nossa diferença”, completa.
Questionada sobre como despertar na plateia essa consciência crítica, ela responde: “Não se pode impor isso, mas dar ferramentas para que o espectador faça a sua própria reflexão. Nós vamos nos apresentar em um teatro com 1300 lugares. Se 1300 pessoas assistirem a nossa peça e cada uma delas sair de lá com uma reflexão, está ótimo. Se todas saírem de lá com a mesma reflexão, está errado. Cada um deve pensar aquilo tudo à sua própria maneira”.
Apesar de encerrar as atividades este ano, após as apresentações em Brasília, o grupo pretende continuar com o projeto no ano que vem. “Não paramos de receber convites e achamos que é muito importante continuar. Esse projeto está servindo a um debate que é muito sério. E é uma ferramenta pedagógica poderosa”, conclui.
Serviço
Filha da AnistiaDireção de João Otávio
Dias 25, 26 E 27 de novembro , às 20h
No Teatro Nacional – Sala Villa Lobos, em Brasília
Apresentações gratuitas, seguidas de debates
Os ingressos serão distribuídos na bilheteria com uma hora de antecedência
Presenças confirmadas nos debates:
Hamilton Pereira - secretário de Cultura do DF
Gilney Vianna - vítima
Iara Xavier Pereira- do Comitê pela Verdade Memória e Justiça do DF/ vítima
Sonia Hypolito - vítima
Paulo Abrão – da Comissão de Anistia
Roberto Aguiar - professor da UNB
Carlos Tiburcio - assessor especial da presidente Dilma Rousseff
Jose Geraldo Souza Jr - reitor da UNB
Alipio Freire – jornalista, escritor e artista plástico
Da Redação,
Joana Rozowykwiat
do site http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=169484&id_secao=11
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