Duas mulheres. Duas vidas marcadas pela luta em busca de um mundo mais justo, igualitário, socialista. Por meios diferentes, dedicaram a vida à causa e sentiram o gosto acre da perseguição política, da privação de direitos. Dulce Maia foi a primeira mulher presa por participar da luta armada contra a ditadura. Liège Rocha viveu na clandestinidade e foi uma das pioneiras do movimento pela anistia no Brasil. O que mais essas mulheres têm em comum? Nunca depuseram as armas.
Por Vanessa Silva
O cenário são as décadas de 1960 a 1980. Jovens, de infância privilegiada, uma viveu em São Paulo e em Santos e a outra, no Piauí, Rio de Janeiro e Bahia. Dulce Maia foi militante da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, e participou de importantes ações armadas junto à organização. Liège Rocha não pegou em armas. Foi da AP – Ação Popular, que mais tarde seria incorporada ao PCdoB – e atuou na célula de serviço, preparando os “pontos”, ou “aparelhos”, para receber e esconder integrantes do movimento.
Dulce tem hoje 73 anos e vive em Cunha, no interior de São Paulo. Nascida na capital paulista, é a caçula de seis irmãos muito mais velhos. A família teve um papel fundamental em sua personalidade, explica: “eu venho de uma família muito liberal. Desde criança eu tive uma vida privilegiada. Minha mãe foi uma mulher combativa, muito atuante, foi uma militante mesmo”. Era folclorista e por isso percorreu todo o país e viu muita miséria e pobreza. “Ela era agitadora política, fazia verdadeiros comícios e esteve presa durante a ditadura de Vargas”, lembra.
“Tive uma infância de muita discussão, de uma convivência, desde muito pequena, contra a ditadura. (...) Eu sou a favor do socialismo e gostaria que existisse o comunismo. Eu lutei contra a ditadura. Pela liberdade, por justiça social. Foi o que minha família sempre pregou.”
Machismo
Revolução não era uma coisa só para guerrilheiros. De acordo com levantamento do Projeto Brasil Nunca Mais, dos 7.367 cidadãos brasileiros que foram denunciados perante a Justiça militar por atuarem contra a ditadura, 12% (884) eram mulheres. Segundo o ensaio “As mulheres na Política Brasileira: os Anos de Chumbo”, realizado pelo professor Marcelo Siqueira Ridenti, da USP, que considera apenas o conjunto das ações armadas urbanas, o número de envolvidas sobe para 18,3% em um universo de 4.124 processados.
Apesar de ser recorrente na sociedade brasileira, nem Liège, nem Dulce identificam no movimento revolucionário sinais de machismo. “Eu nunca senti esse tipo de discriminação no movimento estudantil. (...) Na militância em si eu nunca me senti discriminada por ser mulher. Nas passeatas, nós éramos perseguidos, homens e mulheres, fugindo das baionetas”, nos conta Liège.
Dulce concorda: “eu fui tratada com uma delicadeza muito grande. Como eu comecei a trabalhar com eles para mantê-los [organizava shows e eventos para levantar dinheiro e manter marinheiros, sargentos, cabos do exército e da marinha escondidos em São Paulo], isso criou uma relação de respeito, de companheirismo grande. (...) Nunca senti nenhum machismo”.
Nas prisões, as mulheres sofriam e sofriam tanto quanto os homens. Emocionada, Dulce desabafa: “eu fui muito tratada como macho”. Sem orgulho, como faz questão de enfatizar, diz que foi valente por ter resistido tanto. “Eu aguentei muito firme. Eles diziam que eu era macho, e digamos que era até um certo elogio partindo deles”. Sem conter a emoção, revela que atualmente não aguenta as dores que sente na perna, consequência da tortura e deverá ser operada em breve.
Maternidade
Quando questionada sobre qual era a principal dificuldade das militantes naquela época, Liège aponta a maternidade: “eu tive companheiras que vieram a se afastar [do movimento] por falta de sensibilidade com elas no pós parto, por exemplo”. Ela observa que muitas mulheres “terminaram dando suporte para seus companheiros. Eles avançaram e elas ficaram. Algumas companheiras que eram líderes tiveram que se afastar, foram impedidas de continuar na luta” por esse motivo.
Com três filhas (uma morreu ainda bebê), a militante da AP não deixou a luta por causa da maternidade, mas admite o alto custo: “sei que minhas filhas penaram por causa disso. Elas sofreram para a gente continuar na luta”.
Dulce optou por não ter filhos. “Por causa da luta eu achei que não valia a pena fazê-los correr riscos comigo”. Já em outro contexto, quando retorna do exílio, cria uma Casa Abrigo. “Eu achava que adoção não seria mais o caso dada a idade, dada a minha vida agitada, vários problemas emocionais e de saúde. Achei que não devia”. Mas, de maneira inusitada, um garoto do abrigo a escolheu para ser sua mãe. Adotou o menino (Isaías, hoje com 24 anos) e sua irmã (Luíza, com 25). Recentemente, foi tocada novamente e adotou mais uma moça, Vanessa, de 15 anos.
“Tenho três figuras lindas que me escolheram para mãe e eu estou muito feliz. Meu filho no dia das mães me disse: ‘mãe, obrigada por você ter-me deixado entrar na sua vida’”, recorda satisfeita.
Maternidade hoje
Para Liège, hoje as mulheres vivem outra realidade, mas muitas ainda têm essa dificuldade de cuidar dos filhos. “Hoje até para impulsionar o protagonismo da mulher tem que se levar em conta a condição feminina, que está relacionada com a questão da maternidade, com a divisão sexual e social do trabalho, com o público e o privado”. Ela exemplifica: “fomos educadas para o espaço privado e os homens para o público, mas nós adentramos no público. Só que temos a sobrecarga do trabalho doméstico, de cuidar dos filhos, de cuidar dos idosos. Nós mudamos com relação a estar no mercado de trabalho, na vida pública, mas sempre com essa sobrecarga. E isso dificulta a vida das mulheres”.
No entanto, ela pontua que talvez os homens não tenham essa dimensão, “por isso dizemos que não basta ‘eu ajudo a minha mulher’. Mas qual é o sentimento de compartilhamento? De corresponsabilidade? É diferente. Uma coisa é dizer que ajudo botando [uma coisa] no lugar, outra é ‘eu compartilho as responsabilidades’. As militantes se ressentem disso. Às vezes você não cria condições para que as mulheres possam participar tranquilas de eventos. Isso ainda é uma coisa que precisa avançar”, sentencia.
Elas não depuseram as “armas”
Maria Liége Rocha milita no movimento feminista desde a década de 1970. Fez parte do movimento feminino pela anistia na Bahia, e como ela ressalta, “foram as mulheres que saíram na frente [nesta questão]. Nós nunca paramos”. Hoje, com 67 anos é a Secretária Nacional da Mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e participa da executiva da União Brasileira de Mulheres (UBM). Para ela, “a participação das mulheres e a própria trajetória da história brasileira são invisíveis para o conjunto da sociedade”. Reverter esse quadro é hoje sua frente de ação.
“Eu sou de uma persistência que nem eu imaginava. Teimosa”. É assim que Dulce se descreve ao comentar seu novo projeto, no qual trabalha há três anos. Depois de criar a Casa Abrigo e a ONG Serra Acima, agora ela está empenhada em construir a escola profissionalizante Carlito Maia (nome do irmão, publicitário que foi da resistência e um dos fundadores do PT). A ideia é oferecer um “ensino mais avançado, mais humanizado, voltado para a realidade” dos municípios do alto Vale do Parnaíba. Ambientalista, humanista, essa agora é sua nova trincheira de luta.
Da Redação do Vermelho
deu no site http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=177529&id_secao=8
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