É um sábado, 21 de abril de 1792. Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Faz sol, o céu está limpo. Uma multidão acompanha ansiosa a cena trágica: uma forca, um homem com uma corda em volta do pescoço. Muitos soldados cercam o patíbulo para que ninguém se aproxime. Um padre lembra que não se deve trair a rainha, nem em pensamento. O homem olha para o povo e ergue os olhos para o céu azul, reiteradas vezes, enquanto aguarda o momento fatal. De repente, o povo silencia. O homem é empurrado para o espaço. Os tambores rufam. A platéia solta um grito terrível. Tudo está consumado. Um corpo sem vida balança no ar.
Tudo começara três anos antes, quando um grupo de homens de Vila Rica, Minas Gerais, resolveu rebelar- se contra a opressão da Coroa Portuguesa. Nessa época, o principal produto que os invasores levavam do Brasil era o ouro, abundante nas terras mineiras. Em torno do ouro formou-se uma sociedade composta por mineradores, latifundiários, escravos negros, brancos pobres e um setor médio integrado por pequenos comerciantes, pequenos mineradores e funcionários do governo.
Os mineradores tinham de pagar um quinto do ouro extraído, à Coroa. A partir de 1750, com a queda da produção, foi estabelecida uma quota fixa de imposto, de cem arrobas de ouro, aproximadamente 1.500 kg. Quando a quota não era atingida, o governo da Província mandava arrecadar o que faltasse, de toda a população. Todos pagavam, fossem ou não mineradores, ricos ou pobres. A insatisfação era grande e generalizada.
Na Capitania das Minas Gerais, enquanto poucos enriqueciam, os escravos trabalhavam em condições subumanas para extrair o ouro e “milhares de homens viviam na miséria, passando fome, vagando sem destino pelos arraiais” (Laura de Mello e Souza, em Os Desclassificados do Ouro). Até os grandes mineradores viviam revoltados porque, além do imposto sobre o ouro, tinham de comprar a Portugal, que por sua vez importava da Inglaterra, tudo de que precisavam. Em 1785, a rainha de Portugal proibiu o funcionamento das indústrias brasileiras que, embora engatinhando, já forneciam tecidos, produtos de couro, ferramentas, moendas e armas brancas, a preço muito menor do que os ingleses. Com o acordo imposto pela Inglaterra a Portugal, os colonos passaram a gastar muito mais para adquirir tais produtos.
A revolta transforma-se em movimento
No final de 1788, os homens mais ricos, desesperados com o endividamento e informados de que o governo iniciaria a derrama cobrança do imposto em ouro em meados do ano seguinte, começam a falar em revolta. A população pobre também estava preocupada, pois sabia que a cobrança também recairia sobre ela. Aproveitando esse clima, um grupo de pessoas do setor médio poetas, padres, militares e mineradores começam a dar corpo a um Movimento pela Independência. Eles eram influenciados pelas idéias procedentes da França e dos Estados Unidos da América do Norte. Este havia proclamado sua independência da Inglaterra, em 4 de julho de 1776, após obter vitória na guerra civil; na França, estava em andamento a Revolução Burguesa que espalhava pelo mundo as idéias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Do grupo de conjurados mineiros, participava um homem do povo que viria a ser nosso herói.
Quem era Tiradentes
Joaquim José da Silva Xavier nasceu em 1746, próximo a Vila Rica. Aos onze anos ficou órfão de pai e mãe e foi morar com seu padrinho que lhe ensinou a profissão de dentista, origem do seu apelido. Aos 20 anos trabalhou como tropeiro, transportando mercadorias numa tropa de burros entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Numa dessas viagens, defendeu um escravo que estava sendo castigado, o que lhe valeu um processo. Para pagar as multas e as custas processuais, teve de vender sua tropa de burros. Trabalhou como minerador e, aos 30 anos de idade, sentou praça na 6a Companhia de Dragões, posteriormente Regimento de Cavalaria de Vila Rica. Tornou-se alferes, posto equivalente hoje a 2o tenente.
Insatisfeito por nunca ter sido promovido, apesar de ser dedicado e bravo, pediu licença do Regimento em 1787, aos 41 anos de idade, para tentar implantar projetos de canalização de água no Rio de Janeiro. Ele não era engenheiro, mas tinha vocação e muita capacidade prática, já tendo à época dirigido a construção de estradas. Entretanto, não conseguiu apoio financeiro para seus projetos.
Um desses contatos, em busca de apoio, mudou o rumo da vida de Tiradentes. Foi o seu encontro com José Álvares Maciel, filho de grande comerciante e fazendeiro de Vila Rica. Em vez de lhe emprestar dinheiro, Álvares Maciel propôs que ele participasse do movimento para libertar as Minas Gerais. Não era difícil medir a disposição de Tiradentes para a tarefa, pois nas suas viagens como tropeiro, militar e nessa última em busca de nova profissão, por onde passava ele falava contra a dominação portuguesa. Entusiasmado, Tiradentes volta para Vila Rica e integra-se ao grupo que está preparando a conjuração.
Liberdade, ainda que tarde – o que queriam os revoltosos
Proclamar a Independência e constituir uma República; desenvolver a agricultura, a pecuária, a indústria e a mineração; implantar uma Universidade; anular as dívidas com a Coroa Portuguesa. Esperavam que a vitória repercutisse no Rio de Janeiro, provocando um levante popular, mas estavam preparados para defender a sua República, mesmo sem a adesão de outros lugares. Tiradentes foi o único a defender a libertação dos escravos
Um exemplo de bravura e dignidade
A conjuração mineira tinha participantes oportunistas cuja única preocupação era se livrar das dívidas. Um deles, Joaquim Silvério dos Reis, resolveu denunciar o movimento, em troca do perdão de suas dívidas. O governador suspendeu a derrama e ordenou a prisão dos conjurados. O processo durou três anos. Todos foram condenados à forca, mas tiveram suas penas reduzidas por ordem da rainha Manoel Tiradentes, de Portugal. Apenas Lisboa justamente o homem do povo, teve confirmada a sentença de morte.
É importante refletir sobre o comportamento de Tiradentes na prisão e nos interrogatórios a que foi submetido, para conhecer a sua têmpera revolucionária. Ele foi apontado pelos outros como o a g i t a d o r, o r e s p o n s á v e l p e l o movimento. Alguns zombaram dele, classificando-o de louco, de rústico. Até o famoso poeta Tomás Antônio Gonzaga escreveu um verso na prisão, em que dizia: “Ama a gente assisada/ a honra, a vida, o cabedal tão pouco/ que ponha uma ação destas/ nas mãos de um pobre sem respeito e louco?”. Todos procurando agradar às autoridades, para livrarem-se da m o r t e . Ti r a d e n t e s t e v e u m comportamento exemplar: não entregou ninguém, assumiu toda a responsabilidade pela revolta, não devolveu as zombarias. Uma dignidade extraordinária.
A sentença que o condenou à forca foi cruel. Além da morte, determinou que “sua cabeça fosse cortada, levada a Vila Rica e pregada em lugar público até que o tempo a consumisse. O corpo, dividido em quatro partes a serem pregadas em postes pelos caminhos onde ele pregara a Revolução. Declarou infames os seus filhos e netos. Determinou o confisco dos seus bens; que a casa fosse destruída e no lugar fosse jogado muito sal, para que nada mais se edificasse”. Ao ouvir a confirmação de tal sentença, afirmou serenamente Tiradentes: “Se dez vidas tivesse, as dez vidas eu daria”.
As classes dominantes queriam atemorizar o povo, para que nunca se revoltasse. Pelo contrário, ficou o exemplo de dignidade, de bravura, da capacidade de dar a vida por uma causa justa, para que todos tenham vida e liberdade.
Tiradentes vive na luta
A burguesia apropriou-se indevidamente do nome de Tiradentes, elegendo-o, inclusive, como patrono da Polícia Militar, a mesma que continua sendo instrumento das classes dominantes para reprimir os sem-terra, os sem-teto, todos aqueles que lutam por seus direitos e se revoltam contra a opressão. É mais uma traição a Tiradentes, um herói do povo brasileiro. A Independência, pela qual ele deu a vida, ainda não foi conquistada. A derrama que motivou a Conjuração Mineira hoje acontece através da cobrança da dívida externa, que passou de US$ 148 bilhões em 1994 para US$ 235 bilhões em 1999. No ano passado (1998), 64% do orçamento da União foram destinados ao pagamento de amortizações, juros e serviços das dívidas externa e interna. A proibição do funcionamento das indústrias brasileiras acontece em nossos dias através do favorecimento aos grandes monopólios capitalistas estrangeiros com isenção de impostos e outros benefícios; com a entrega do patrimônio público ao grande capital estrangeiro e nacional (privatizações), da liberação de taxas sobre produtos importados. Tudo isso gera o fechamento das pequenas e médias indústrias nacionais, provocando desemprego, fome e miséria. Como na época de Tiradentes, o Brasil continua sendo espoliado pelo capital estrangeiro e os trabalhadores vivem na miséria, desempregados e vendo seus direitos desrespeitados. Por isso mesmo, vemos crescer em todas as partes deste país o mesmo sentimento de revolta que animou os revolucionários de Minas Gerais.
Vila Rica, hoje, é o Brasil inteiro. Que todo o povo se levante num movimento de libertação e derrube as classes dominantes e seus “Joaquim Silvério dos Reis” que governam o Brasil, construindo uma nova sociedade onde haja terra, trabalho e vida digna para todos. Tiradentes, nosso herói, estará iluminando esse caminho, juntamente com tantos bravos que tombaram na luta através da nossa História. A liberdade nunca é tardia.
“Liberdade, essa palavra
Que o sonho humano alimenta
Que não há ninguém que explique
E ninguém que não entenda”
(Cecília Meireles)
Luiz Alves(Publicado no Jornal A Verdade, nº 6 )
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